Dizia-se, entre os grafômanos da Montanhesa, que havia um homem capaz de ouvir o tempo. Não o tic-tac monótono do relógio, mas o tempo que escorrega entre as palavras caladas, o tempo que se disfarça de lembrança para escapar do esquecimento. Esse homem (ou a ficção de um homem) atende pelo nome de Ademir Lins, reeditado por Carlos Marcelo em “O Escutador”, um romance de estrutura rarefeita e sedutora, capaz de fazer o leitor pousar o livro com um peso novo na alma: o de quem compreende que escutar é mais que ouvir, é desarmar-se diante do outro.
“Minha história começa como tantas outras. Mas, pela primeira vez, me pertence e preciso contá-la com as minhas palavras. Pretendo não tomar muito tempo, por isso deixarei de mencionar particularidades que me pareçam desimportantes e as partes onde nada aconteceu. […] Tentava trazer a caçula para o meu mundo. Quando terminava um livro, sentava-me ao lado dela e contava a história do meu jeito. Encolhida num canto, olhos no nada, ela não conseguia me escutar. […] Restavam a vaca crioula e os dois bezerros para me ouvir.”

A origem editorial do livro já é, por si, um enigma literário: lançado originalmente em 1958, com tiragem modesta, e depois mergulhado em décadas de silêncio, “O Escutador” ressurge agora em edição cuidadosa, que conserva anotações manuscritas, fac-símiles e memórias da editora pioneira Virgínia Lemos. Mas o que impressiona não é apenas o resgate arqueológico de um título perdido. O que realmente ressoa em suas páginas é a reinvenção de uma voz.
“Não deixarei de escutar as vozes que escolhi no abismo para guiar a minha alma.”
O livro simula memórias, confissões, fragmentos de uma consciência espiralada. Natanael (ou Ademir, ou talvez ninguém, talvez todos) narra sua trajetória de menino memorioso a escutador profissional, contratado para registrar, sem interferência, os relatos de autores folhetinescos que trabalham na sombra do anonimato. É aí que começa a alquimia. Pois o que se propõe como escuta alheia, comedida, vira um exercício feroz de subjetividade.
“À espera do primeiro salário para garantir outra noite de dança e sonhos, meus dias na cidade dos escritores se esvaíam sem grandes sobressaltos. […] A dinâmica na Montanhesa era outra. No início da semana, a porta do confessionário se abria para a escuta dos autores dos livrinhos. No dia seguinte, tecia minhas considerações por escrito e utilizava a Olivetti de Dalila para confeccionar o relatório a ser entregue a Virgínia Lemos. Na sexta-feira, ansioso, aguardava as considerações da editora como se esperasse uma carta de alforria.”
O maior mérito da narrativa (e aqui reside sua originalidade) está justamente em diluir as fronteiras entre autor e personagem, entre verdade e invenção, entre o que se escuta e o que se projeta. O escutador não é um reprodutor de discursos, mas um criador de sentido. É, no fundo, um escritor em surdina. Quando ele transcreve os relatos dos outros, ele os contamina com o que carrega de si: infância, perda, desejo, doença, obsessão.
“Fui até onde pulsava a cidade. Armazéns, bancos, mercados, bibliotecas abarrotadas, todos a funcionar poderosamente. Comprei um jornal e sentei-me à mesa de um dos bares do centro. Pedi um brandy and soda com gelo e, depois de ler a crônica do dia, passei a admirar o que via. […] Senti que, ali, o homem do século 20 poderia saborear, plenamente, a delícia de viver.”
Há uma cena em que Natanael dança com uma mulher misteriosa, Estela, no salão esfumaçado de um dancing, e depois a vê surgir no bonde como uma aparição de perfume antigo. Esses encontros, costurados por uma música que parece vir do além, condensam a poética do romance: escutar é permitir que o mundo lhe invada por inteiro, mesmo que isso custe a sanidade. Estela, como o próprio livro, é enigma e espelho. Personagem real? Projeção de uma mente à beira do delírio? Pouco importa. O que importa é a densidade da experiência e a forma como Carlos Marcelo nos conduz até ela, sem nos oferecer alívio.
“Tive sonhos em profusão, sempre com música. Algumas melodias vinham da minha infância, cantadas pela minha mãe, assoviadas por meu pai. Outras tantas, igualmente maviosas, eram indecifráveis. […] Parecia que eu havia escutado, ao mesmo tempo, todas as canções do mundo.”
A construção dos personagens é outro triunfo. São tipos ao mesmo tempo caricaturais e profundamente humanos: a editora pragmática e visionária, o autor fracassado que ainda sonha com glória, o jornalista cínico que acredita em dançarinas. Mas ninguém ali é o que parece. O pastiche de referências, de Drummond a Eduardo Frieiro, de Guimarães Rosa a Aníbal Machado, não é apenas homenagem, é método. A colcha de citações e ecos funciona como crítica da própria literatura brasileira: uma escrita construída por fragmentos de vozes, por escutas interrompidas, por silêncios atravessados por desejo.
“Teimar em ser escritor numa terra em que as cousas literárias são tidas como nulas ou pouco menos que inexistentes é não ter bem conformada a razão.” […] Reconheci a frase de efeito. Constava em um dos ensaios desencantados que tomei emprestado na biblioteca pública. Fingi acatar o conselho. No íntimo, contudo, fiquei contrariado.”
Carlos Marcelo orquestra tudo isso com estilo refinado, que escapa da banalidade sem nunca soar artificial. Sua prosa é feita de dobras e desvios, como quem escreve ao lado do que quer dizer. Há ritmo, há ironia, há ternura. E sobretudo há escuta (não como técnica, mas como uma espécie de ética narrativa). Escutar é deixar-se afetar. E “O Escutador” é um livro que afeta.
“Mistérios prevalecem.” “Mais do que arrependimento, sinto-me em dívida com a memória de Ademir Lins. Eu deveria ter escutado o que disse o escutador (se é que as palavras eram dele, se é que isto importa).”
O tema da empatia aparece com intensidade contida, sem jamais ceder ao sentimentalismo. Natanael escuta os delírios dos autores, as dores dos personagens, os silêncios da cidade. Mas ele também escuta o próprio corpo adoecer, o pulmão falhar, a juventude se escoar em bibliotecas vazias. A escuta se transforma, então, em resistência. Num mundo cada vez mais barulhento, literal e metaforicamente, ouvir é um gesto subversivo. Um gesto político.
A contribuição do livro para a literatura contemporânea brasileira é, nesse sentido, insuspeita. Carlos Marcelo não apenas resgata uma obra seminal esquecida, como a reinscreve no presente com uma camada crítica que a atualiza. O texto não busca agradar. Não busca sequer convencer. Ele propõe. Ele sugere. Ele faz pensar, o que é cada vez mais raro.
“O escutador apenas repetira a nova bossa entre os jovens que sonhavam viver de palavras: imitar uma das passagens memoráveis de ‘O encontro marcado’, de Fernando Sabino.”
E se há algo que perdura depois da leitura, é essa inquietação: quem escuta o escutador? A que vozes ele serve? Até que ponto a escuta é passiva? E quando ela se transforma em autoria? Como a literatura, esse teatro de vozes, pode ser um espaço onde a escuta não é subordinação, mas invenção?
Na era dos algoritmos, do ruído incessante, dos discursos de ego inflado, “O Escutador” soa como uma música secreta. Um sussurro que atravessa as paredes da pressa. Um lembrete de que, às vezes, é preciso parar para escutar. E, ao escutar, talvez escrever. E, ao escrever, existir. Mesmo que apenas em silêncio.