A relação entre justiça e vingança é um dos temas mais antigos, complexos e recorrentes da literatura mundial. Das tragédias gregas aos romances contemporâneos, o embate da urgência de desagravo pela lei com o revide pela força do arrebatamento tem levado autores a refletir sobre moralidade, poder, culpa, salvação. Essa dialética bastante específica vai moldando personagens, urde as tramas e suscita dilemas éticos que desafiam o público a rever seus próprios valores. A literatura, ao explorar a fronteira entre esses conceitos, revela como eles podem se sobrepor, se confundir e até se corromper mutuamente. Em muitas narrativas, o que começa como um anseio por justiça rapidamente degenera em vingança, mostrando como o sofrimento e a dor podem distorcer a percepção moral dos personagens.
As tragédias gregas oferecem alguns dos exemplos mais simbólicos de tal imprecisão. “Oresteia” (458 a.C.), de Ésquilo (524 a.C. — 455 a.C.), retrata a vingança como uma desditosa herança familiar. Orestes mata sua mãe, Clitemnestra, para vingar o assassinato de seu pai, Agamenon — um ato de vingança que exige, por sua vez, mais sangue, num ciclo interminável. É somente com a intervenção da deusa Atena e a criação de um tribunal que o ciclo é interrompido, simbolizando a transição da vingança, privada e emotiva, para a justiça, pública e institucional. Essa transição representa um avanço civilizatório: a troca da lei do mais forte pela mediação imparcial do Estado. Portanto, a literatura funciona não apenas como um espelho da realidade, mas encarna também a força crítica que transforma o pensamento coletivo. Shakespeare aprofunda essa ideia em obras como “Hamlet” (1623), sobre um jovem príncipe determinado a vingar a morte do pai, mas também consumido pela hesitação das dúvidas morais e da responsabilidade pelo que venha a fazer. A desforra vira obsessão, levando à morte não apenas do antagonista, Cláudio, mas também de inocentes e do próprio Hamlet. A peça não delimita um marco racional entre justiça e vingança, mas compõe um mosaico sombrio das efeitos de buscar-se reparação a todo custo.
“Oresteia”, “Hamlet” e outros seis trabalhos, de autores dos séculos 19, 20 e 21, passam à lista abaixo como exemplos de que a ânsia por não sentir-se inferior atravessa o tempo, culturas e estilos. A alma humana é por eles examinada em seus momentos de dor por perdas e escolhas difíceis, entre pagar o mal com o mal ou perdoar. A literatura e o teatro nem sempre dão respostas — mas ampliam a compreensão sobre o que é justiça e os perigos da vingança. Destarte, convidam à reflexão, num desejo um tanto insano, mas possível, de melhorar essa nossa pobre espécie.

Já houve um tempo em que ser mulher era uma batalha de todo santo dia. Ter o respeito da própria família, dos amigos, da comunidade, do Estado passava por fazer tudo quanto os homens mandavam, primeiro o pai e os irmãos, depois os professores e quando se concluíam os anos de estudo destinados a seu gênero, casar-se com o marido que escolheram para ela, o homem a quem teria de obedecer para o resto da vida, seu senhor e seu dono, a quem deveria prestar contas até de seus sonhos mais obscuros. Uma garota selvagem da Carolina do Norte suporta os desmandos de uma existência de privações no que pode haver de mais básico até que começa a virar a mesa, pagando um preço alto por sua liberdade. “Um Lugar Bem Longe Daqui”, romance da americana Delia Owens publicado em 2018, é o grito de socorro de um espírito atormentado, mas não só. O enredo oscila entre três fases da história de Catherine Danielle Clark, a Kya, nos pântanos da fictícia Barkley Cove, escapando de um pai bêbado e abusivo para cair nas mãos de um pretendente que a ilude com juras de amor que não pode cumprir até que sobrevenha-lhe a desgraça que por pouco não a arruína. Owens é hábil em conduzir o leitor por pistas falsas, sempre priorizando a visão de sua anti-heroína, até despejar a grande revelação que não chega a escandalizar ninguém, mas não deixa de ser perturbadora ao instilar nosso ódio a posturas que sabemos erradas, mas que não temos o condão de mudar.

“A Casa dos Espíritos” é uma obra marcante da chilena Isabel Allende, que mistura realismo mágico com crítica social e política. O romance acompanha várias gerações da família Trueba, especialmente através das figuras de Esteban Trueba e Clara del Valle, em um enredo que entrelaça o pessoal e o histórico. A narrativa começa com a infância de Clara, uma menina com dons sobrenaturais, e percorre décadas de transformações sociais no Chile, incluindo o período de repressão militar. A linguagem de Allende é rica, poética e sensorial, e a presença do realismo mágico aprofunda a experiência emocional dos personagens. A autora constrói personagens femininas fortes e complexas, em contraste com a figura patriarcal e autoritária de Esteban, expondo conflitos entre tradição e mudança. O livro também aborda temas como desigualdade social, violência de gênero e poder político, demonstrando o impacto das estruturas sociais opressoras na vida pessoal. Além disso, Allende oferece uma perspectiva feminina e latino-americana da história, com sensibilidade e crítica. O entrelaçamento entre o fantástico e o histórico convida à reflexão sobre memória, trauma e identidade. A Casa dos Espíritos é, assim, um romance profundo e comovente que combina narrativa envolvente com denúncia social, consolidando-se como uma das grandes obras da literatura hispano-americana contemporânea.

A fama tem seu preço. Ninguém esmerou tanto para comprovar a máxima que Truman Streckfus Persons (1924-1984), um dos escritores mais célebres e badalados que a América já produziu. Equilibrando-se entre a autorreferência e o talento genuíno, Truman Capote, um homem assumidamente excêntrico, tinha um faro para histórias que, com linguagem a um só tempo sofisticada e sem rodeios, acertava o público com longas descrições do que imaginava ou via. Depois do sucesso tranquilo de “Bonequinha de Luxo” (1958), que franqueou de vez sua entrada nas altas rodas de Nova York e Los Angeles, além da participação assídua em programas de entrevistas nos quais destilava sua afetação, a vida de Capote deu a guinada de que tanto carecia em 16 de novembro de 1959, quando, ao ler uma matéria do “The New York Times” em seu apartamento no Brooklyn, seus olhos de um azul esmaecido brilharam por trás das lentes grossas. Capote desloca-se para Holcomb, Kansas, a fim de cobrir o assassinato de Herbert Clutter (1911-1959), um módico proprietário rural, e sua família, massacre cujos bastidores já haviam alcançado todo o país. Conhecer Perry Edward Smith (1928-1965) e Richard Eugene Hickock (1931-1965), os acusados pelos homicídios, é o último ato de uma tragédia que vai se consumando ao longo de um quarto de século. Truman Capote nunca mais foi o mesmo depois de “A Sangue Frio”. O jornalismo e a literatura também não.

“O Sol é Para Todos” é uma obra marcante da literatura norte-americana que mistura elementos de romance de formação e denúncia social. Narrado pela perspectiva de Scout Finch, uma criança curiosa e questionadora, o livro se passa na cidade fictícia de Maycomb, no Alabama, durante a Grande Depressão. O enredo gira em torno da injustiça racial, principalmente no julgamento de Tom Robinson, um homem negro acusado injustamente de estuprar uma mulher branca. O pai de Scout, Atticus Finch, é o advogado de defesa de Tom e representa um ideal de ética, empatia e coragem moral diante do preconceito da sociedade local. A obra critica duramente o racismo institucionalizado e o machismo, revelando como essas estruturas afetam profundamente a infância, a justiça e as relações humanas. O contraste entre a inocência infantil e a brutalidade do mundo adulto evidencia o processo de amadurecimento forçado de Scout e seu irmão, Jem. Ao mesmo tempo, Harper Lee constrói personagens complexos e simbólicos, como Boo Radley, que subverte expectativas e reforça o tema da empatia. O livro continua relevante por abordar questões ainda presentes na sociedade contemporânea, como intolerância, discriminação e a importância da educação moral. Com linguagem acessível e sensível, a autora provoca reflexões profundas sobre justiça e humanidade.

“Os Irmãos Karamázov” condensa o pensamento e a verve dostoievskianos num livro monumental. Em edições que variam de quinhentas a mil páginas, o último romance de Dostoiévski versa sobre os eternos dilemas existenciais, frisando a degradação moral que a religião quase nunca corrige. Dmítri, Ivan e Aliócha, os personagens-título, simbolizam um temperamento que todo ser humano têm em maior ou menor grau. Filhos de um devasso, o libertino Dmítri, o niilista Ivan e o nobre Aliocha batem-se, cada qual a sua maneira, à cata de sentido e de força para vencer o pecado, a dúvida, o tédio, a vontade inelutável de desistir e de permanecer no erro. Na virada do primeiro para o segundo ato, o julgamento de um dos irmãos aquece a narrativa, um golpe certeiro de Dostoiévski, que sabe como poucos equilibrar rigor e entretenimento.

Escrita entre 1599 e 1601 e publicada mais de duas décadas mais tarde, em 1623, “Hamlet” é uma das tragédias mais influentes da literatura ocidental. A peça narra a história do príncipe Hamlet, da Dinamarca, que busca vingar a morte de seu pai, o rei, assassinado pelo próprio irmão, Cláudio, o novo monarca e casado com Gertrudes, mãe de Hamlet. O enredo é marcado por conflitos internos, traições e reflexões filosóficas sobre a vida, a morte e o sentido da existência. A dúvida é um dos temas centrais da obra. Hamlet hesita em agir, questionando a moralidade da vingança e a veracidade das aparições de seu pai. Essa indecisão o leva a fingir loucura, confundindo seus inimigos e o público. A célebre frase “Ser ou não ser, eis a questão” revela a profundidade de sua angústia existencial. O drama também aborda temas como corrupção, aparência versus realidade e a fragilidade humana. A trama se intensifica com a morte de Polônio, o sofrimento de Ofélia e a traição dos amigos Rosencrantz e Guildenstern. No desfecho trágico, quase todos os personagens principais morrem, incluindo Hamlet, que só alcança a verdade e a paz no momento de sua morte. “Hamlet” permanece atual por sua complexidade psicológica e profundidade filosófica. É uma obra que convida à introspecção e ao questionamento da condição humana, sendo considerada uma das maiores criações de Shakespeare e da dramaturgia mundial.

“Oresteia”, trilogia trágica escrita por Ésquilo em 458 a.C., é composta por três peças: Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. A obra narra o ciclo de violência e vingança que assola a casa dos Atridas, começando com o retorno de Agamêmnon da Guerra de Troia e seu assassinato por Clitemnestra, sua esposa, em retaliação pelo sacrifício da filha Ifigênia. Em Coéforas, o filho Orestes, instigado por Apolo, vinga a morte do pai matando a mãe, mergulhando-se em culpa e perseguição pelas Erínias, deusas da vingança. Finalmente, em Eumênides, ocorre a transição do julgamento pessoal para o julgamento institucional, com a criação do tribunal do Areópago, promovendo o surgimento da justiça civilizada. A trilogia é marcada por uma profunda reflexão sobre justiça, destino, responsabilidade moral e transição da vingança arcaica para o direito racional. Ésquilo combina mito e inovação para mostrar a evolução ética da sociedade ateniense. O coro, elemento essencial da tragédia grega, atua como consciência coletiva e tensiona os dilemas morais apresentados. Com linguagem solene e estrutura simbólica, “Oresteia” não apenas dramatiza conflitos familiares, mas propõe uma ordem social mais justa, o que simboliza o triunfo da razão sobre a barbárie. Trata-se, assim, de uma obra fundacional tanto para o teatro quanto para o pensamento político ocidental.