O tédio, essa sensação ambígua que oscila entre o vazio e o excesso, é um tema que atravessa a história da literatura e da filosofia como um fenômeno existencial e da cultura em senso estrito. Longe de ser apenas um mal-estar passageiro, o tédio tem servido como ponto de partida para profundas reflexões, manifestações artísticas e até mesmo como motor criativo. A literatura, por seu turno, tem sido tanto produto quanto espelho desse sentimento. Escritores debruçaram-se sobre o tédio, reagiram a ele em sua produção criativa ou usaram-no como lente crítica da realidade. A complexa relação entre literatura e tédio percorre diferentes períodos históricos e correntes teóricas, materializado na produção de autores os mais diversos, moldando obras literárias de suma importância para os fundamentos da arte narrativa, ao passo que também desvelam aspectos essenciais da condição humana.
Arthur Schopenhauer (1788-1860) via o tédio como a manifestação do vazio da vida, enquanto Søren Kierkegaard (1813-1855) considerava-o um elemento central da experiência humana, associando-o à angústia e à liberdade. Para ele, “o tédio é a raiz de todo mal”, pois surge da capacidade humana de imaginar e desejar constantemente algo diferente do que se tem. Já na psicologia, o tédio é muitas vezes descrito como um estado emocional de baixa estimulação, caracterizado por falta de interesse, apatia e insatisfação. Embora geralmente visto como uma experiência negativa, estudos contemporâneos vêm destacando seu papel potencialmente positivo como gerador de criatividade e reflexão. Essa duplicidade — tédio como estagnação e como provocação — é o que torna sua relação com a literatura especialmente rica.
A literatura foi vista como uma das formas privilegiadas de escape do tédio. Desde as narrativas orais nas sociedades antigas até os romances modernos, ler — ou escrever — sempre foi uma maneira de ocupar o tempo e preencher o vazio da existência cotidiana. No entanto, ao mesmo tempo, a literatura também frequentemente tematiza o próprio tédio, seja como crítica social, seja como questão filosófica. Em muitos casos, literatura e tédio são faces de uma mesma moeda: a literatura surge do tédio, e o tédio é matéria da literatura. A experiência de ler pode tanto afastar o tédio quanto conduzir o leitor a um enfrentamento mais profundo com suas próprias angústias. Com o avanço do realismo e do naturalismo no século 19, o tédio passou a ser retratado de forma mais objetiva, quase científica.
Na obra de Gustave Flaubert (1821-1880) especialmente em “Madame Bovary” (1856), o tédio burguês aparece como crítica ao vazio da vida provinciana. Emma Bovary, entediada com sua rotina e seu casamento, busca no adultério e nos romances sentimentais um escape ilusório, que a leva à ruína. O tédio, nesse contexto, é tanto sintoma social quanto denúncia estética. Émile Zola (1840-1902), por sua vez, em seu naturalismo, também aborda o tédio como uma consequência das condições materiais e psicológicas dos personagens. No Brasil, Machado de Assis (1839-1908) oferece um retrato singular do tédio em obras como “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), onde o protagonista, morto e desencantado, olha para a vida com uma mistura de ironia e apatia. O tédio machadiano é filosófico, mordaz e revela uma crítica profunda à hipocrisia social.
Clarice Lispector (1920-1977) também lida com o tédio de maneira densa, sensorial, quase metafísica. Em obras como “A Paixão Segundo G.H.” (1964), a protagonista vive uma experiência de tédio transcendental, que a conduz a uma espécie de epifania. A escrita, nesse sentido, pode ser vista como ritual de exorcismo e espaço de elaboração estética do tédio. Em muitos casos, o que para um leitor é fonte de identificação, para a autora foi o processo de enfrentamento de um vazio. A relação entre literatura e tédio também passa pela experiência do leitor. Certas obras, especialmente aquelas mais introspectivas ou experimentais, são frequentemente acusadas de serem “entediosas”. No entanto, esse tipo de tédio pode ser produtivo. O leitor é instado a desacelerar, refletir, enfrentar o silêncio e a monotonia — movimentos opostos à lógica do entretenimento instantâneo. A relação entre literatura e tédio é, acima de tudo, paradoxal. O tédio pode paralisar, mas pode também gerar movimento. Pode parecer vazio, mas está cheio de possibilidades. Pode afastar da vida, mas aproxima da arte.
Na tradição literária, o tédio não é apenas um tema, mas uma força revolucionária. Ele provoca rupturas, convida à introspecção, força a imaginação. Como disse Roland Barthes (1915-1980), “o tédio é o horizonte do sentido”, e é talvez por isso que ele permanece tão presente na literatura: porque obriga-nos a perguntar o que estamos fazendo aqui, o que falta, o que podemos criar a partir do nada. Assim, a literatura não apenas retrata o tédio, mas o transforma — em linguagem, em estilo, em questionamento. E, nesse processo, nos permite ver que, mesmo no tédio, há sentido. Ou, pelo menos, a busca por ele. A grande ironia é que o esforço por driblar o tédio pode resultar em mais tédio, como prova a lista abaixo, por motivos que, evidentemente, passam bem longe da unanimidade. Clarice entra com o já citado “A Paixão Segundo G.H.”, junto com outros seis romancistas, grandes por desafiarem o senso comum e correrem o risco mortal de aborrecer.

“O Pintassilgo”, romance vencedor do Prêmio Pulitzer de Ficção em 2014, é uma obra densa e emocionalmente complexa escrita por Donna Tartt. Com quase mil páginas, o livro acompanha a vida de Theodore Decker, um jovem nova-iorquino cuja vida é transformada após sobreviver a um atentado a bomba em um museu — evento no qual perde a mãe e, em meio ao caos, acaba levando consigo uma famosa pintura: O Pintassilgo, do holandês Carel Fabritius (1622-1654). Narrado em primeira pessoa, o romance traça a jornada de Theo da infância à idade adulta, passando por períodos em Nova York, Las Vegas e Amsterdã. Ao longo da narrativa, Tartt explora temas como luto, culpa, identidade, arte e redenção, com uma escrita rica e detalhista que mergulha profundamente na psique do protagonista. A autora constrói personagens complexos e memoráveis, como Boris, amigo ucraniano de Theo, cuja presença representa tanto a fuga quanto a perdição. A relação de Theo com a pintura se torna simbólica: ela representa sua ligação com a mãe, sua dor e seu senso de valor pessoal, enquanto também o arrasta para um submundo de falsificações e criminalidade. Com a óbvia influência de Charles Dickens (1812-1870), Tartt combina o romance de formação com o thriller psicológico e o drama existencial. Embora o ritmo seja irregular em alguns trechos, a densidade emocional e a beleza da prosa sustentam o interesse. “O Pintassilgo” é uma obra grandiosa que trata da fragilidade humana diante do acaso e da arte como consolo diante do sofrimento.

Publicado em 1985, “Amor nos Tempos de Cólera” é uma obra-prima do escritor colombiano Gabriel García Márquez. A história se passa no Caribe colombiano e narra, com lirismo e profundidade, o amor persistente de Florentino Ariza por Fermina Daza, ao longo de mais de cinquenta anos. A narrativa entrelaça os sentimentos mais humanos com os cenários sociais, políticos e culturais da América Latina no final do século 19 e início do século 20. O romance destaca-se pela construção de personagens complexos e pela escrita poética e envolvente de Márquez. Florentino é um personagem contraditório: ao mesmo tempo romântico e obsessivo, ele vive dezenas de casos amorosos enquanto espera o retorno de Fermina, que, por sua vez, vive um casamento longo e tradicional com o médico Juvenal Urbino. A obra reflete sobre o amor sob diversas formas: idealizado, carnal, maduro, resiliente e até mesmo o amor como doença. O título remete à convivência entre o amor e a cólera – tanto literal, como na presença da epidemia, quanto simbólica, com as turbulências emocionais e sociais enfrentadas pelos personagens. Márquez aborda também a passagem do tempo e o envelhecimento, propondo uma visão de que o amor verdadeiro pode resistir ao tempo, à distância e às mudanças da vida. Com sua prosa mágica e realista, Márquez transforma um romance aparentemente simples em uma reflexão profunda sobre a vida, os sentimentos e o poder da esperança. “Amor nos Tempos de Cólera” é uma celebração da paixão e da esperança, mesmo quando tudo parece perdido. Um livro essencial para quem busca compreender os meandros da alma humana.

“A Trilogia de Nova York”, escrita por Paul Auster, é uma obra singular que reúne três romances policiais — “Cidade de Vidro”, “Fantasmas” e “O Quarto Fechado” — os quais, embora independentes, dialogam entre si por temas, atmosferas e estrutura narrativa. Lançada em 1985, a trilogia desconstrói o gênero noir e transforma o detetive em um reflexo existencial do próprio autor e leitor. “Em Cidade de Vidro”, acompanhamos Quinn, um escritor de livros policiais que assume a identidade de um detetive chamado Paul Auster, mergulhando em uma investigação surreal que o leva à beira da loucura e do anonimato. “Já em Fantasmas”, Blue é um detetive encarregado de observar Black, mas aos poucos sua própria identidade se dilui nessa tarefa repetitiva e obsessiva. Por fim, “O Quarto Fechado” traz a história de um narrador que tenta reconstruir a vida de um amigo desaparecido, confrontando segredos e camadas de si mesmo. Auster usa a metalinguagem, a intertextualidade e o jogo com a identidade como elementos centrais. Suas histórias são labirínticas e questionam os limites entre realidade e ficção. Nova York, cenário recorrente, surge como um espaço caótico, impessoal e simbólico da solidão urbana.

“A Paixão Segundo G.H.”, publicado em 1964, é um dos romances mais enigmáticos e profundos de Clarice Lispector. Narrado em primeira pessoa, o livro apresenta o monólogo interior de G.H., uma mulher de classe média do Rio de Janeiro que, ao entrar no quarto da empregada recém-demitida, inicia uma intensa jornada existencial. O ponto de ruptura ocorre quando ela se depara com uma barata, evento aparentemente banal, mas que desencadeia uma crise ontológica avassaladora. Clarice constrói a narrativa como uma investigação da essência humana, conduzindo o leitor por um fluxo de consciência denso, poético e filosófico. O contato com “o estranho”, representado pela barata, provoca em G.H. uma desconstrução do seu ego, confrontando-a com o vazio, o silêncio e a animalidade que também fazem parte da condição humana. O romance questiona os limites da linguagem, da identidade e da racionalidade. Ao se ver despida de suas máscaras sociais, G.H. entra em contato com uma forma de “paixão” que se relaciona com o sofrimento, o espanto e a transcendência. A escrita de Clarice é fragmentada, introspectiva e carregada de imagens simbólicas, exigindo do leitor um envolvimento sensível e filosófico.

Publicado em 1963, “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar” é uma obra densa e perturbadora do escritor japonês Yukio Mishima, que entrelaça lirismo poético com uma violência latente e simbólica. Ambientado no Japão do pós-guerra, o romance explora o conflito entre a tradição e a modernidade, a pureza idealizada e a decadência dos valores. A trama gira em torno de Noboru, um adolescente introspectivo e intelectual, membro de um grupo secreto de jovens que desprezam o sentimentalismo e a hipocrisia adulta. O ponto de virada ocorre quando Fusako, a mãe de Noboru, viúva e proprietária de uma loja de roupas, inicia um relacionamento com Ryuji, um marinheiro viril que representa, aos olhos do garoto, a figura heroica do ideal romântico e viril. Contudo, com o tempo, Ryuji abandona o mar e opta por uma vida doméstica, perdendo, para Noboru, o brilho mítico que possuía. Esse gesto de rendição ao cotidiano burguês é visto como uma traição imperdoável pelo grupo de adolescentes, levando a um desfecho sombrio e perturbador. Mishima, com sua escrita refinada e cheia de simbolismos, questiona a moralidade, o conformismo e a busca por um sentido transcendente na existência. A narrativa é curta, mas intensa, com forte carga filosófica e estética, revelando o fascínio de Mishima pela disciplina, pelo heroísmo e pela ideia de morte como redenção.

Como Dante Alighieri (1265-1321), Guimarães Rosa também se meteu a inventar uma língua própria. Em “Grande Sertão: Veredas”, o autor amalgama gírias, regionalismos, as falas arcaica e moderna, sem nenhum pejo de ferir a susceptibilidade do cânone. A sabedoria do mundo para Rosa é a das gentes dos intestinos do Brasil, todas elas se ajuntando na deserdão das Gerais. Épico e moderno, clássico e revolucionário, “Grande Sertão: Veredas” aborda, como só Guimarães Rosa mesmo seria capaz, o misticismo, o heroísmo, a vilania, a metafísica do homem do campo, do lavrador, do vaqueiro, mas também sua natureza telúrica, em que o chão sagrado das veredas mineiras é o maná do conhecimento mais profundo. Já no nome de seu protagonista, Rosa faz menção à importância dos recursos naturais, em especial da água, e de sua preservação como condição fundamental para a vida do homem — e o sertanejo, antes de tudo um sábio, tem isso entranhado em sua carne dura. Guimarães Rosa toda a vida foi um visionário, um sujeito que enxergava muitos planaltos à frente de seu tempo, e expunha, entre muitos dos argumentos de “Grande Sertão: Veredas” o caos da vida na Terra patrocinado pelo caráter predatório do gênero humano, ávido por consumir, por destruir, por (des)matar. Riobaldo, ex-jagunço, vai narrando, entre desconfiado e solícito, suas pelejas, seus anseios, seus deleites, suas agruras. E o amor, que tenta a todo custo sufocar, por Diadorim.

“Ulisses”, de James Joyce, é uma obra-prima modernista que revolucionou a literatura do século 20. Publicado em 1922, o romance narra um único dia — 16 de junho de 1904 — na vida de Leopold Bloom, um homem comum que percorre as ruas de Dublin. A estrutura da obra é uma reinterpretação da “Odisseia“ de Homero (928 a.C. — 898 a.C.), com Bloom assumindo o papel de Ulisses, enquanto outros personagens, como Stephen Dedalus, ecoam figuras mitológicas. A escrita de Joyce é marcada por inovações estilísticas, como o fluxo de consciência, jogos de linguagem e múltiplas vozes narrativas, o que desafia a linearidade tradicional da narrativa. A complexidade do texto exige um leitor atento e paciente, mas recompensa com uma profundidade emocional e filosófica rara. Mais do que uma simples jornada urbana, “Ulisses” explora temas como identidade, paternidade, sexualidade, alienação e o papel da memória. A atenção minuciosa de Joyce à linguagem e aos detalhes cotidianos transforma o banal em poesia. Embora frequentemente considerado hermético, “Ulisses” é uma celebração do espírito humano, da cidade e da linguagem. É um livro exigente, mas profundamente gratificante, cuja influência é sentida até hoje na literatura contemporânea. Uma leitura essencial para quem busca entender os limites e o poder da narrativa literária.