Filme com Brad Pitt e Marion Cotillard, que acaba de chegar à Netflix, vale cada milésimo de segundo do seu tempo Divulgação / Paramount Pictures

Filme com Brad Pitt e Marion Cotillard, que acaba de chegar à Netflix, vale cada milésimo de segundo do seu tempo

Amor em tempos extremos é um assunto para o qual o cinema sempre olhou com atenção especial. A parcimônia de “Aliados” diverge frontalmente de “Casablanca” (1942), por exemplo. O clássico dirigido por Michael Curtiz (1886-1962) decerto é o longa que primeiro adicionou a uma narrativa que se desenrola ao longo de um conflito armado, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a exata medida de romance e drama — sem contar “…E o Vento Levou” (1939), em que Victor Fleming (1889-1949) carrega nas tintas do sentimentalismo afetado, que também tem seu lugar e faz do filme algo que perdura ao longo da história, sendo impossível e pouco inteligente dizer que o amor da geniosa Scarlet O’hara e do janota Rhett K. Butler, eternizados por Vivien Leigh (1913-1967) e Clark Gable (1901-1960), não vale mais.

O caso é que o dinamismo tolo da vida contemporânea não nos permite apreciar essas histórias, caudalosas, plenas de minúcias, com a dedicação que elas merecem. Por essas e outras é que a releitura esporádica desse argumento cai como um bálsamo para gente de uma era tão movimentada e ao mesmo tempo tão vazia, em que quase tudo é pensado para ter utilidade prática e ser consumido rapidamente, evitando-se reflexões que podem se mostrar um tanto incômodas.

Trabalho primoroso, mais um para a conta de Robert Zemeckis, “Aliados”, primeira incursão do diretor no tema, rende digna homenagem ao gênero, sem que se note no roteiro de Steven Knight o sabor rançoso do pastiche, um achado em produções tão conceitualmente herméticas — não obstante estejam presentes traços bem-marcados de tramas como a de “Bastardos Inglórios” (2009), o épico nonsense (e delicioso) de Quentin Tarantino.

Aliás, os pontos de contato com o filme de Tarantino extrapolam a mera semântica: Brad Pitt protagoniza ambas as histórias, da mesma forma que também foi escolhida para o papel da anti-heroína uma atriz francesa (sai Mélanie Laurent, cuja performance como Shosanna oscila de passagens excepcionalmente boas para momentos francamente esquecíveis, e entra a versatilidade admirável de Marion Cotillard, muito mais uniforme).

É óbvio que em se admitindo a natureza da ideia central defendida por Knight, também genuinamente inovadora, como a de “Bastardos Inglórios” — malgrado ele alegue que, quando jovem, ouviu que a história era verídica —, poder-se-ia esperar que uma francesa tivesse a primazia, mas o desempenho de Cotillard é, sem favor nenhum, excelente.

Em 1942, mesmo ano em que se passa “Casablanca”, o oficial de inteligência canadense Max Vatan, interpretado por Pitt, rompe o filme, descendo de paraquedas num plano-sequência de tirar o fôlego. Vatan aterrissa no deserto do Protetorado Francês em Marrocos, no norte da África, com destino a sua cidade mais encantadora, onde, com a ajuda de Marianne Beausejour, a espiã de Cotillard que combate os nazistas pela Resistência Francesa, deve executar o Embaixador alemão lotado em território marroquino.

Em Casablanca, os dois fingem ter um compromisso devidamente atestado pela lei, mas mesmo assim fomentam a suspeita de um oficial no café a que costumam ir, para emprestar credibilidade à farsa. O plano só não se desmancha porque Vatan o persegue e o que vem depois dá o grau da tensão que irá permear a vida dos dois até o encerramento. A cena corre um ano; Vatan e Beausejour, claro, se apaixonaram e se casaram mesmo, fixando residência em Londres.

Coincidências funestas começam a inviabilizar a atuação dos espiões contra o crescente domínio de Hitler sobre toda a Europa. Como Beausejour tem um passado nebuloso, o alto comando dos Aliados, que se dedicam a minar a força do Eixo a partir da Inglaterra, desconfia que ela seja uma agente dupla, encarregada de repassar as informações adquiridas na rotina com o marido. Colocado contra a parede, Vatan precisa descobrir qual a verdadeira identidade de Beausejour, e em se comprovando seu envolvimento com o Eixo, tomar a pior atitude de sua vida, sob pena de receber ele o maior castigo.

Zemeckis é dos raros cineastas capazes de dobrar a técnica de modo que trabalhe em benefício da plasticidade do que se assiste em cena, uma sua marca registrada no transcurso da carreira brilhante. Em “Aliados”, o diretor se socorre das inúmeras possibilidades da fotografia de Don Burgess para assinalar os trechos em que a história poderá apontar para um curso suave, quando os enquadramentos tornam-se mais amplos e mais luminosos, voltando aos tons sombrios e às perspectivas claustrofóbicas.

O cineasta é igualmente preciso na direção de atores e aproveita tudo o que seu elenco tem a oferecer, destacando-se, mais uma vez, o trabalho de Cotillard. A soma de todas essas variáveis redunda numa equação em que o tributo a um dos gêneros mais nobres do cinema resta autêntico, o que é fundamental quanto a se estender o alcance de sua produção.


Filme: Aliados
Direção: Robert Zemeckis
Ano: 2016
Gêneros: Guerra/Drama/Romance
Nota: 9/10