Comédia dramática na Netflix vai tocar profundamente seu coração Divulgação / Cinépolis Distribución

Comédia dramática na Netflix vai tocar profundamente seu coração

Admitir fracassos é sempre doloroso. Tanto pior se, por trás de todas essas rasteiras que nos dá o destino, estão uma vida em comum, filhos, sonhos que morrem no ovo, as frustrações que advêm das esperas vãs, a invencível sensação de ter se perdido de si. “Elvira” é mais uma das excelentes comédias dramáticas latinas com nome de mulher a verter seu bocado d’água no moinho das desditas femininas, e em se excluindo Almodóvar, Manolo Caro disputa cabeça a cabeça a liderança desse ranking com Sebastián Lelio, de “Glória” (2013). Onze anos mais nova que a mártir do chileno, a personagem-título do filme de Caro passa por agonias semelhantes que as vividas pela própria encarnação do sofrimento amoroso catalisado por Paulina García, Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim pelo papel, com a ressalva de ter de dar conta de dois filhos pequenos, um recém-nascido, enquanto passa boa parte dos 108 minutos da história num processo automutilador, a tentar se convencer de uma verdade implacável, cada vez mais óbvia e especialmente cruel numa sequência já nos estertores do ótimo roteiro de Caro.

O bebê chora e a protagonista, como se absorta no transe em que se refugia desse mundo, liga e apaga a luz do abajur à cabeceira da cama onde dorme com Gustavo Díaz, um homem aparentemente monótono, de Carlos Bardem. É ela, claro, quem vai ao socorro do menino, ao passo que Gustavo, calculando cada movimento, embora não julgue necessário esconder nada, veste-se e sai pouco tempo depois, sem despertar suspeita, no meio da noite da Cidade do México. O dia amanhece; Elvira está na cama com os filhos quando o interfone toca e duas mulheres, de uma tal Irmandade da Luz Perpétua, chamam por Luisa, a moradora do apartamento 4D, interpretada por uma Vanessa Bauche mais mesmerizante a cada cena. Elvira transmite-lhe o recado, e aproveita para pedir, numa atitude entre a coação e a pena, que a vizinha olhe seus filhos. O diretor-roteirista desperta no público a dúvida sobre se Elvira fez uma descoberta qualquer, deixando-se guiar pela intuição, ou apenas ligou os pontos e saiu a averiguar o que já era evidente, mas se negava a compreender. Durante o périplo da esposa malfadada, primeiro pela farmácia de seu Ruti, de Juan Carlos Colombo, depois pelo bar frequentado por Gustavo, Cecilia Suárez molda o que ainda poderia haver de inconsistente em sua personagem de forma a transformá-la numa alma que pena à cata de lugar num mundo que já não é o seu — apesar do banho de loja e do corte de cabelo moderno. Caro lida com elementos como a morte e seus derivados (funerárias, caixões, coroas de flores) justamente a fim de ligar a metáfora do fim e do recomeço, de Elvira e de Gustavo, reservando uma boa surpresa no desfecho, momento em que a anti-heroína de Suárez se cansa de sua vida inventada.


Filme: Elvira
Direção: Manolo Caro
Ano: 2014
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.