Todo mundo que convive com um gato sabe: eles não são exatamente previsíveis. Podem passar horas ignorando sua existência para, de repente, pular no seu colo com a autoridade de quem acabou de comprar o imóvel. São silenciosos, elegantes e ligeiramente filosóficos, como se meditassem o tempo inteiro sobre questões que você, pobre humano, jamais compreenderá. Mas isso não significa que sejam cruéis, apenas seletivos. Enquanto você tenta entender a lógica de suas escolhas, eles já estão duas páginas à frente do roteiro da sua vida, observando com aquele olhar de quem sabe exatamente o que está acontecendo (mas não vai contar). Não por maldade. Só porque seria… entediante.
Os gatos são personagens perfeitos para a literatura: não apenas por sua pose naturalmente teatral, mas pela combinação única de charme, imprevisibilidade e uma sabedoria que parece vinda de outras eras. Eles entram e saem de cena como quem tem acesso aos bastidores da realidade. Estão sempre entre mundos, o doméstico e o selvagem, o visível e o oculto, o ronronar e o silêncio absoluto. É natural, portanto, que autores tenham usado gatos como metáforas poderosas: do sobrenatural à sátira política, da mística oriental ao delírio psicológico. Os bichanos não falam muito, é verdade. Mas nas páginas certas, dizem tudo com um simples miado.
Esta lista é uma homenagem, divertida, claro, mas também cheia de admiração, à maneira como os gatos atravessam a ficção com seus próprios códigos. Eles não salvam o mundo, não fazem discursos, não morrem por ninguém. E ainda assim, mudam tudo ao seu redor. Se há algo de maquiavélico, é na maneira sutil com que transformam o curso das histórias, sem jamais assumir o protagonismo explícito. São gênios discretos, com um quê de misticismo e uma pitada de sarcasmo. E talvez, só talvez, estejam mesmo um passo à frente de todos nós. Porque no fundo, todo grande plano literário precisa de um gato, nem que seja só para manter a trama sob controle.

Em meio a uma fuga silenciosa, um adolescente de quinze anos mergulha num Japão onde fronteiras físicas e metafísicas se dissolvem como tinta na água. Ele tenta escapar de uma profecia que ecoa como maldição, ao mesmo tempo que outro homem, que perdeu a capacidade de pensar, mas ganhou o dom de conversar com gatos, segue seu próprio caminho labiríntico. Nessa dualidade onírica, gatos assumem o papel de mensageiros, oráculos, ou talvez apenas cínicos com bigodes. A narrativa mistura música, literatura, memória e misticismo, construindo uma jornada repleta de símbolos, presságios e silêncios. A cada página, a realidade parece se curvar diante de forças invisíveis, guiadas por criaturas que, se miam, não é por acaso. Nada é literal, mas tudo é preciso, inclusive os felinos que surgem não como animais, mas como entidades dotadas de intenções que humanos jamais compreenderão por completo. No fim, talvez o maior segredo esteja mesmo escondido sob uma pelagem macia.

Durante uma sessão de regressão, uma mulher considerada a mais feia de sua geração descobre ter vivido, milênios antes, como uma das esposas do rei Salomão. Por ter memória prodigiosa, teria sido incumbida de registrar os feitos, desejos e desvarios de seu tempo — numa narrativa que mistura arqueologia, invenção e ousadia. Com humor afiado e inventividade formal, a história desmonta o sagrado sem desrespeitá-lo, propondo uma reescrita feminista, sensual e irônica das escrituras. Mas entre sacerdotes, reis e escribas, lá está ele: o gato. Não com nome, mas com função — observador silencioso, símbolo da astúcia, da vigilância noturna, da sabedoria não verbal. Ele aparece como metáfora recorrente de um saber que escapa às narrativas oficiais. Numa terra dominada por patriarcas barbudos, um olhar felino percorre os bastidores da História. E, ao que tudo indica, sempre soube mais do que revelava.

Moscou entra em colapso quando um visitante estrangeiro — que nada mais é do que o próprio Diabo — resolve organizar um espetáculo grotesco para expor a hipocrisia da sociedade soviética. Ao seu lado, um séquito incomum: entre eles, um gato preto imenso, bípede, falante e sarcástico, chamado Behemoth, que rouba a cena com um talento particular para o caos. Ele não só dispara ironias com o charme de um literato bêbado, como também manipula situações com a precisão de um estrategista militar. A trama alterna entre perseguições políticas, debates teológicos e uma narrativa paralela sobre Pôncio Pilatos, enquanto Behemoth transita como uma espécie de bobo demoníaco que, no fundo, parece compreender tudo melhor do que os humanos. No coração do absurdo, ele é o fio que costura o real e o mágico, sempre com um sorriso perverso. Um gato? Talvez. Um gênio do mal disfarçado de pelúcia? Com certeza.

Quando os animais de uma fazenda se rebelam contra seus donos humanos, tudo parece apontar para a construção de uma sociedade igualitária, sem opressões. Mas o ideal logo é corrompido: os porcos, líderes autoproclamados da revolução, transformam-se em tiranos piores do que os anteriores. A trama, embora protagonizada por suínos ambiciosos, revela sutilezas inquietantes em cada espécie. E entre todos os animais, há sempre um olhar distante e analítico — o do gato. Ele não discursa, não trabalha, não participa de comícios, mas observa tudo com desdém estratégico. Paira pelas reuniões e some quando convém, como quem já sabe que toda revolução é, cedo ou tarde, devorada por seus próprios slogans. Sua ausência é política, sua indiferença é filosófica. No fundo, talvez seja o único personagem lúcido do livro. Um agente do caos passivo, que se recusa a ser doutrinado. E, por isso mesmo, vitorioso.

Em uma espiral de degradação moral, um narrador sem nome relata os acontecimentos que o levaram ao crime e à loucura — e tudo começa com um gato. Pluto, o animal silencioso e enigmático, primeiro desperta o afeto do protagonista, até que o álcool, a raiva e a culpa transformam essa relação em algo sombrio. Após cometer um ato brutal contra o bicho, o narrador acredita ter se livrado de seus demônios, mas é justamente aí que o horror começa. Um novo gato aparece, semelhante ao primeiro, mas com um detalhe perturbador. A partir daí, os limites entre culpa e punição tornam-se indistintos. A narrativa, seca e alucinada, sugere que o felino é mais do que um simples animal — talvez um espectro, um juiz, ou a própria consciência personificada. Na penumbra da mente humana, aquele olhar amarelo brilha como sentença. E mia como quem ri por último.