Que o sistema educacional brasileiro é capenga, cheio de falhas e remendos porcos, qualquer um que não se tenha deixado anestesiar pela infame sordidez da política o sabe. A sensação é que os 2,3 milhões de alunos que se formam no ensino médio todos os anos no Brasil nunca pegaram num livro senão pelo imperativo circunstancial das avaliações periódicas, que tentam mensurar, de um jeito bastante obsoleto, o que foi mesmo absorvido — poder-se-ia dizer que o vestibular seria outro catalisador do índice de leitura nacional, não fossem apenas 621 mil desses estudantes os que passam à próxima etapa da instrução formal e chegam à universidade logo em seguida. Os que conseguem atingir essa meta largam pelo caminho quase tudo quanto tiveram de aprender que não sirva em sua nova jornada acadêmica, como se se livrassem de um fardo incômodo, penoso, que embarga-lhes o progresso e em breve acabaria por virar uma barreira inexpugnável. É o que acontece com os títulos de literatura apresentados à garotada no decorrer de sua trajetória letiva. José de Alencar (1829-1877), Álvares de Azevedo (1831-1852), Aluísio de Azevedo (1857-1913), Graciliano Ramos (1892-1953), Mário de Andrade (1893-1945), voltam todos para o fundo de alguma gaveta, junto com seu líder maior. Machado de Assis (1839-1908) é decerto o mais lembrado dentre eles, mas é também cruelmente ostracizado, pagando por uma antipatia e até uma repulsa que não lhe cabem. Mas que encerram uma lógica.
Machado chega ao corpo discente numa quadra perigosa da vida desses futuros alguma coisa. Professores e coordenadores pedagógicos não demonstram a justa preocupação, a necessária preocupação com a delicadeza da pena do Bruxo do Cosme Velho, feita de ironia, sarcasmo, cinismo, idas e vindas no tempo cronológico e psíquico dos personagens, fluxos de consciência que rejeitam a linearidade, ambivalência de pontos de vista e sofisticação estética. “A favor” de Machado, há que se apontar sua objetividade vocabular: não se precisa saber o dicionário de cor para entender o que o autor quer transmitir, um saboroso paradoxo, já que o refinamento intelectual de Machado não concerne à palavra, mas a seu pensamento. Quase tudo o que ele escreveu sobre os costumes, vícios morais, dilemas do espírito, impedimentos éticos, indivíduos que os desconsideram em nome da vaidade e alguma posterior locupletação replica-se no cotidiano do homem deste insano século 21, pela razão óbvia de que a natureza humana é uma só, a despeito do avançar dos séculos. Em sendo assim, é um despautério que a dialética da traição versus a incerteza em “Dom Casmurro” (1899), o embate entre razão e loucura em “O Alienista” (1882), a crítica ao egoísmo e ao farisaísmo das elites em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), sejam tachados de assuntos velhos e o texto de Machado, de “difícil”. Livros não são fáceis ou difíceis: são bons ou ruins. E o Bruxo sempre foi matador.
Machado não é apenas o nome mais ilustre da história da literatura nacional: é um dos inventores do humano. Sua obra é uma profunda investigação das ambiguidades, das contradições, das ironias que marcam a vida. Seus personagens são complexos, cheios de nuances, jamais completamente bons ou maus. Sua escrita, mesmo refinada, dialoga com questões universais: o poder, a vaidade, a loucura, a culpa, o desejo, a morte. Ler Machado, portanto, não deveria ser um castigo, mas uma aventura. Uma jornada intelectual e emocional capaz de provocar o leitor, de desafiar suas certezas, de ampliar sua visão de mundo. Para isso, é preciso mudar a forma como os clássicos são ensinados.
A escola tem o dever de formar leitores, não apenas decoradores de conteúdos. Para isso, é necessário repensar a maneira como a literatura é ensinada, abandonar o formalismo estéril, investir na mediação afetiva e intelectual, e tratar os clássicos não como monumentos mortos, mas como diálogos vivos com a experiência humana. Urge reconciliarmos os jovens com Machado e com a literatura como um todo pois, como o próprio autor sabia, é na ficção que muitas vezes encontramos as verdades mais profundas sobre nós mesmos. Os míopes captam detalhes que as grandes vistas não pegam. Não conhecer a profundidade de Machado de Assis é vagar sem destino no mais absoluto breu.