Último dia para assistir na Netflix ao filme europeu, digno de Oscar, que foi aplaudido de pé nos cinemas Divulgação / Apache Films

Último dia para assistir na Netflix ao filme europeu, digno de Oscar, que foi aplaudido de pé nos cinemas

Há algum tempo e a muito custo, as mulheres habitam o mundo de conquistas em que sentem-se cada mais à vontade, sabendo de suas limitações e lidando com seus fracassos, pequenos e grandes, nos campos os mais diversos, ao passo que adaptam a velha maneira de encarar a vida a seus novos anseios. Às vezes, tudo parece um show, milimetricamente estudado, com pausas dramáticas longas demais, e é sobre esse movimento que Carlos Vermut tenta dar uma explicação em “Quién te Cantará”, uma história com duas protagonistas, um corpo repartido em duas almas.

O madrilenho é, naturalmente, comparado a um outro colega e patrício, o que decerto o honra, mas o seu jeito de também retratar as tantas idiossincrasias, as inúmeras estranhezas, os milhões de gritos sufocados de suas personagens femininas, vem à superfície num enredo metafísico, como se arrancado de um sonho, sem que se tenha muito nítida a certeza de quando se vai acordar — e como.

Lila Cassen ainda é reconhecida como uma estrela pop de sucesso meteórico durante os anos 1990, embora por muito menos gente — o que, frise-se, está longe de constituir uma de suas raras preocupações. O diretor-roteirista sugere que Lila não tem mais vontade alguma de despertar o que quer que seja em ninguém: ela quer passar o que considera o resto de sua vida quieta no paraíso que não divide com mais ninguém, apesar de ser obrigada a partilhar sua intimidade com Blanca Guerrero, um misto de empresária, governanta, babá (!) e, quiçá, mãe, a quem deve favores na carreira e fora dela.

É Blanca quem encontra a chefe desacordada na praia sobre a qual a cantora mora num palacete incrustado na rocha, e essa sequência, breve, tomada pela penumbra da arrebentação que a fotografia de Eduard Grau capta tão bem, é o esclarece o pungente mistério que passou a definir tudo quanto cerca Lila, a começar do ostracismo com que acostumou-se rápido demais.

Najwa Nimri e Carme Elias compõem uma parceria entre tocante e desconfortável ao longo de todo o primeiro ato, quando o nome do filme surge, finalmente, numa tela negra, e Elias é vista com frequência cada vez menor. Antes que sua personagem torne-se de todo obsoleta, Blanca faz a revelação que dá azo a narrativa central e explica, com todas as letras, que Lila precisa retomar a turnê de apresentações ao vivo se quiser continuar desfrutando do padrão nababesco que tem — malgrado convenha perguntar se alguém na sua condição importar-se-ia em deixar um casarão em que está quase sempre só para morar, quem sabe, num apartamento bem menor, mas igualmente faustoso; o que se depreende do que Vermut ilumina e que a diva não opina sobre coisa alguma, somente acata o que manda-lhe Blanca, tão anestesiada está. É nesse ponto que o diretor trabalha o encontro que há de transformar sua protagonista.

Violeta, a fã entre amorosa e obsessiva interpretada com gana por Eva Llorach, é a única a reunir todos as qualidades necessárias para salvar Lila. Além de muito parecida com seu ídolo maior — nunca se fica sabendo qual a sua verdadeira fisionomia, se sempre lembrara a estrela, ou se foi emulando seu brilho —, Violeta também canta (e esses, aliás, são os respiros mais esteticamente adequados num filme assim). “Quién te Cantará” tem muito do Almodóvar de “Volver” (2006) e “Mães Paralelas” (2021), mas é Vermut antes de mais nada. Amargo e bom.


Filme: Quién te Cantará
Direção: Carlos Vermut
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Melodrama
Nota: 8/10