Último dia para assistir na Netflix: o filme mais angustiante e intenso da história recente do cinema Divulgação / Universal Pictures

Último dia para assistir na Netflix: o filme mais angustiante e intenso da história recente do cinema

Há maneiras e maneiras de se provocar a inspiração de alguém. Histórias feito a de Louis Zamperini, o protagonista de “Invencível”, mais um dos bons dramas de guerra dirigidos por Angelina Jolie, no entanto, fazem muito mais que isso. Jolie, que dá a impressão de ser mesmo uma aficionada pelo tema, incorporando com gosto e convicção a aura da mulher bonita que prova a si e ao mundo que vai além da estética, vislumbrara no enredo, dissecado sem clemência por outra mulher, Laura Hillenbrand, a chance de liquidar muitos coelhos numa só cajadada. O romance em que o longa é baseado, cuja publicação, em 2010, acendeu o interesse do público pela figura central da trama — “Invencível — Uma História Real de Coragem, Sobrevivência e Redenção”, o livro de Hillenbrand, não tardou a virar um best seller —, é, coincidentemente ou não, um dos mais fílmicos de que se tem notícia, com narrações até meio enfadonhamente desnecessárias sobre a deterioração da física do herói a dado momento da história. A diretora não deixa por menos e aproveita o veio firmado por Hillenbrand a fim de fazer uma das coisas que aprendeu ao longo de um quarto de século ouvindo as instruções dos inúmeros diretores com quem já trabalhou: elaborar ângulos insólitos e dinâmicos para o que é estático por natureza.

Já na abertura se nota que “Invencível” não a menor intenção de ser só mais um filme de guerra. A ótima sequência de bombardeios durante uma batalha aérea na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a primeira das soberbas contribuições do roteiro dos irmãos Ethan e Joel Coen, Richard Lagravenese e William Nicholson, aponta para soldados vigorosos, corados, diligentes no ofício de que a pátria os incumbiu, no gozo pleno de suas faculdades mentais, capazes de uma ou outra piada tola entre a chuva de balas de que desviam, interrompida no meio para a melhor execução do serviço. Essas são cenas de que não se pode prescindir para a absorção da tragédia em que o filme se transforma minutos depois, quando da avaria da turbina esquerda do B-29 Superfortress um tanto sucateado de que o capitão Russel Allen Phillips, o Phil, dispõe para investir contra as tropas do Eixo em alguma latitude desconhecida do Pacífico Norte. Domhnall Gleeson é “o” nome neste segmento, capturando bem o espírito independente, altivo, nobre, mas sobretudo de um humanista incorrigível, incapaz de pensar em si mesmo antes de garantir o bem-estar de seus subordinados. Como se houvessem tirado zero ou um quando do ensaio geral, a figura de Gleeson vai se tornando mais e mais secundária em favor da grande estrela do filme, uma promessa que, afortunadamente, se concretizou.

Jack O’Connell tinha já algum tempo de estrada quando da estreia de “Invencível”, em 15 de janeiro de 2015, e o transcurso desses oito anos é marcado por escolhas criteriosas, em que pôde colocar à prova seu talento, desafiar-se em trabalhos progressivamente complexos e arrebatar público e crítica com performances verdadeiramente extraordinárias. Protagonista da segunda e da terceira reviravoltas do enredo (aquela muito mais vibrante que esta), sem mencionar o desfecho, o soldado Louis Zamperini de O’Connell é um caso típico de personagem que encontra seu intérprete, e vice-versa. A trajetória de Zamperini como uma potência do atletismo de meados ao final dos anos 1930, interrompida justamente porque se alista para lutar na frente dos Aliados, vem à tona como flashes nos momentos de revoltante agonia que o mocinho atravessa — a uma certa quadra do filme, Jolie tira bom proveito de seu astro mostrando um O’Connell aflitivamente esquelético, obrigado a sustentar um madeiro quase tão pesado quanto ele, metáfora crística que, malgrado incômoda, apelativa, cai como uma luva em histórias assim. No diapasão inverso, Takamasa Ishihara, também conhecido como Miyavi, brilha na pele do vilão Mutsushiro Watanabe, o oficial japonês que sevicia Zamperini das maneiras mais ignominiosas, sem pejo de revelar uma personalidade psicopática, e, quem sabe, uma paixão recolhida.

O contraste da beleza juvenil daqueles rapazes, que Jolie explora ad nauseam nos prolegômenos, justaposta ao que se vão tornando à medida que a história toma corpo, lembra muito o argumento central de “Nada de Novo no Front” (2022), a adaptação de Edward Berger para o romance homônimo do alemão Erich Maria Remarque (1898-1970), ganhador do Oscar de Melhor Filme Internacional 2023. Os garotos retratados por Remarque, desiludidos, famélicos, precocemente amargurados e sem esperança, tentando sobreviver à Grande Guerra (1914-1918), são os mesmos representados por Louis Zamperini (1917-2014), um herói como já não se encontra mais, em Hollywood ou na vida real.


Filme: Invencível
Direção: Angelina Jolie
Ano: 2014
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 9/10