O filme da Netflix que todas as pessoas deveriam assistir para elevar o espírito e acreditar no impossível Julian Panetta / Netflix

O filme da Netflix que todas as pessoas deveriam assistir para elevar o espírito e acreditar no impossível

Chega para cada um, na hora exata, o tempo em que é forçoso dispensar o conforto tóxico da casa paterna e dar um rumo à própria vida. Com Jessica Watson não foi diferente, ainda que a convivência com os pais não fosse precisamente nem o eterno (e falso) idílio de amor sem liberdade, nem a tirania dos quereres sem o justo (e necessário) mérito. “Destemida” capta um fragmento bastante limitado do que foi a vida de Watson até o momento em que considerou-se pronta para empreender a grande aventura de sua curta jornada no mundo, a despeito do incentivo dos pais, navegadores apaixonados, mas diletantes: ser a pessoa mais jovem a completar a volta em redor do globo por mar numa embarcação a velas, no caso a bordo de Pink, um barquinho rosa-choque que ela conseguira reformar graças a um sóbrio patrocínio. Pode parecer um estranhíssimo paradoxo, mas o vento da história soprava contra a garota. Aos dezesseis anos qualquer um tem todo o tempo do mundo para fazer o quer que seja, mas Watson não dispunha de tanto tempo assim. Em 1999, Jesse Martin contava dezoito anos ao ganhar o título de velejador mais novo a cruzar os quatro oceanos sozinho. E ainda havia muito a acontecer.

A diretora, a australiana Sarah Spillane, dispõe de seu roteiro, escrito com Cathy Randall e Rebecca Banner, de modo a conferir a natureza de um mosaico ao enredo da vida de Watson, indo e vindo no tempo com analepses e prolepses em que se ousa vislumbrar como a futura heroína da Austrália contemporânea enxerga o mundo a sua volta — a começar pelo incentivo diligentemente calculado dos pais, Julie e Roger, de Anna Paquin (que até outro dia era Flora McGrath, a menininha enxerida de “O Piano” [1993], levado à tela pela neozelandesa Jane Campion, e já se tornou uma quarentona cheia de encantos) e Josh Lawson —, esse vendaval indômito que a impele para o mar, a natureza mesma de que se reveste sua humana irrequietude. Alya Browne e Teagan Croft compartilham de igual entendimento da personagem, entregando uma a outras versões de Watson ora confiantes, ora tomadas pela dúvida e pelo medo, em todas essas situações amparada por Ben Bryant, misto de técnico da velejadora e supervisor de Pink, respiro cômico-filosófico que confere a “Destemida” o bem-vindo contraponto agridoce na performance de Cliff Curtis.

A apresentação da família e dos afetos de Watson servem como um prólogo cartesianamente pensado no intuito de amenizar os desenganos da navegadora depois que, colhida por um grande susto quando pensava já estar suficientemente tarimbada, zarpa, afinal, do pequeno porto de Sunshine Coast, no sul do estado de Queensland, nordeste australiano. Por óbvio, a efetiva aventura rende perigos ainda mais atemorizantes; a tensão dessas sequências é valorizada pelos primeiros planos da edição de Veronika Jenet, imprimindo dimensão verdadeiramente fílmica aos relatos eivados de ficção de Watson, a exemplo de um pesadelo do qual se quer acordar o mais breve possível, ainda que faltem 210 dias e milhares de quilômetros de mar para o desfecho. Parte deles registrados em 2015 sem o mesmo brilho na autobiografia homônima — a esse propósito, vale muito mais a leitura de “Cem Dias entre Céu e Mar” (2005, Companhia de Bolso), do velho marujo brasileiro Amyr Klink. Em 15 de maio de 2010, Jessica Watson voltou a Sunshine Coast. Jesse Martin era, finalmente, passado.


Filme: Destemida
Direção: Sarah Spillane
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Ação
Nota: 9/10