Último dia para assistir na Netflix ao filme ganhador do Oscar, que Denzel Washington considera sua melhor atuação David Lee / Paramount Pictures

Último dia para assistir na Netflix ao filme ganhador do Oscar, que Denzel Washington considera sua melhor atuação

Aceitar as pessoas não como as concebemos, mas da forma que elas são nunca foi fácil, mas é um pressuposto irrevogável para a plenitude do processo civilizatório. Indivíduos com o mínimo de decoro estão desde tenra idade habituados a reprimir seus arroubos de intolerância, seus ímpetos de preconceito, sua tendência natural para julgamentos de toda sorte, policiando-se a fim de não se deixar corromper pelo veneno da segregação.

Manifestar pelos demais o apreço que se quer que tenham para conosco, muito mais que um bom costume, deve ser um exercício, uma prática que nos livra da danação da ira, sentimento que ataca o homem quase sempre sem motivo que a justifique. Essa tarefa inglória, mas reconfortante, de compreender o outro, dar-lhes uma palavra de incentivo, um sorriso franco, desarmado, destinar-lhes um olhar de bondade que seja, muitas vezes exige de nós tamanho sacrifício que é como se nos lançássemos a uma jornada quase interminável rumo àquela vida, em que as circunstâncias que temos como verdadeiramente absurdas são o que pode existir de mais trivial.

O ser humano nunca há de se desvencilhar das tantas questões que o atazanam. Problema estrutural em muitos países ainda hoje, a discriminação racial dá margem para muitas discussões — todas em alguma medida ligadas a incapacidade de enxergar o pode haver de tão obscuro no espírito, no nosso espírito, que nos impede de reconhecer como igual gente digna do mesmo respeito, que sofre e sua como nós.

Intérprete de primeiríssima grandeza, o diretor Denzel Washington faz de “Um Limite Entre Nós” (2016) o grito de socorro de um homem triste, acuado pela memória de fracassos que continuam a infernizá-lo e o aprisionam na espiral de cólera e pânico de si mesmo que o reduz a uma pálida imagem do que fora, patrimônio pelo qual será lembrado por aqueles a quem não consegue amar e cujo amor vai matando aos poucos. Essa talvez seja a grande questão numa história cujo eixo passa pelo debate de temas sociais de relevância central desde sempre, mas que se torna ainda mais dolorida ao apontar para um desenlace tão pouco usual, pleno de sutilezas e de pequenas decisões muito complexas.

Já com alguma experiência na direção, Washington se sai bem ao transpor para a tela o caudaloso roteiro de August Wilson (1945-2005), o próprio autor da peça de mesmo nome. Sucesso rumoroso na Broadway, Wilson escreveu “Fences” em 1983 e só quatro depois, em 1987, seu trabalho ganhou corpo no circuito de teatro comercial mais famoso do mundo. Contando com essa, foram três montagens; Washington foi o protagonista da segunda, em 2010 — quando recebeu dez indicações ao Tony, a maior condecoração para produções teatrais dos Estados Unidos, incluindo as de Melhor Ator e Melhor Atriz — e o espetáculo voltou à cena das ribaltas mais visadas de Nova York em 2014.

Em 2016, “Fences” a parceria de Wilson e seu protagonista masculino rendeu um dos filmes mais comentados da história da Academia, também lembrado como um possível vencedor em 2017 (perdeu para “Moonlight”, de Barry Jenkins, o que confirmou a tendência de agraciar um enredo voltado à temática racial).

À primeira vista, é o personagem de Washington quem parece de fato importar na trama, mas à medida que o texto de Wilson ganha profundidade e uma grande virada se impõe, Viola Davis é quem passa a dominar a narrativa. Os dois são Troy e Rose Maxson, casal de meia-idade em Pittsburgh, oeste da Pensilvânia, durante os conflagrados anos 1950. Troy, o coletor de lixo vivido por Washington, quis ser um astro do beisebol e até teria alguma chance, não fosse o fato de ter começado às portas dos quarenta anos, tempo em que atletas profissionais ou já se aposentaram ou estão em marcha acelerada rumo ao fim da carreira.

Qualquer pessoa minimamente normal enxerga suas próprias limitações, mas Troy sempre acha uma maneira de torcer a verdade a seu favor, vitimizar-se e, o pior, transferir a responsabilidade por seus malogros para quem o cerca. Nesse ponto, o texto de Wilson assinala uma psicopatia que recrudesce com o tempo e é ratificada precisamente no momento em que Davis, vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel — tenho minhas sobre se não seria ELA a personagem central, tanto da peça como do longa —, ganha o destaque que dá novo fôlego a “Um Limite Entre Nós”.

Os embates crescentes de Rose com o marido só perdem em verve dramática para os entreveros que o personagem de Washington arruma com Cory, o filho caçula interpretado por Jovan Adepo, apresentados com ênfase quase didática. Os únicos com quem Troy parece se entender são o filho mais velho, Lyons, de Russell Hornsby, de uma união anterior, e o amigo Jim Bono, respiro cômico de Stephen McKinley Henderson, que conhecera em circunstâncias nada honrosas.

Wilson consegue fazer com que o racismo se preste a introduzir discussões igualmente delicadas, como machismo, misoginia, etarismo e a doença mental, personificada em Gabe, o irmão mais novo de Troy, neurologicamente comprometido depois de um ferimento grave quando servia numa frente de batalha na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O plano geral da última cena, se abrindo para o céu nublado de Pittsburgh a partir do quintal da casa humilde em que os Maxson atravessam os anos, alivia o peso do patriarca sobre a família, que não o absolve por todos os impropérios e todas as vergonhas, mas segue amando-o.


Filme: Um Limite Entre Nós
Direção: Denzel Washington
Ano: 2016
Gênero: Drama
Nota: 9/10