Eu sou feito de música

Eu sou feito de música

Eu sou feito de música. Mesmo quando estou dormindo, eu sou feito de música. Certa noite, sonhei que uma clave de sol perseguia-me pela pauta de uma partitura escura. A história toda foi uma espécie de ópera, um misto de drama e riso. Pode não parecer, mas o som é feito de luz, principalmente quando eu me sinto mais solitário, pra baixo, semínimo, breve, grave, pior que um violoncelo quando rompe uma das cordas. Não me recordo quando foi que rompi com a lira. Meus pensamentos andam pragmáticos demais, pesados demais, dignos da poesia concreta.

Lembro-me de sempre cantar no chuveiro quando eu tinha dezesseis. Ora, para o seleto público de pôsteres pregados na parede, eu fazia um baita sucesso. O que sucedeu aos falsetes, às coreografias espalhafatosas — certamente, ridículas — que eu desfilava nu, sentindo-me o mais talentoso e feliz dos homens nus que já cantaram no palco de um banheiro, ao imaginar que o mero ato de tomar banho num cubículo azulejado — a solfejar como um melro — fosse o mesmo que correr a cantar na chuva? Eu não era um Gene Kelly. Hoje, sei que não preciso de apupos, da salva de palmas da plateia faminta, mas, um pouquinho mais de respeito das pessoas com quem cruzo pelas ruas já seria ótimo.

Caros, eu nunca quis dançar, nem na chuva, nem no tempo de estio. De fato, extasiar-me com a música, devotar a ela certo tempo e zelo, cantar sempre que possível, tudo isso sempre foi a minha praia, e ninguém precisava enfiar a cabeça na areia para me ouvir melhor. Digo mais: aproveitem todo o canto que vocês tiverem entulhado aí dentro do peito. O mundo lá fora não nos oferece guarda-chuvas, nem guarida, principalmente quando chove canivete. Não se enganem, companheiros: a vida também desafina.

Mas nem tudo é desatino, eu sei. Apesar das pedras do caminho e dos borrões na partitura, eu sou feito de música, e suponho que será sempre assim, até que o microfone seja desligado. Se liguem no que eu lhes canto agora: eu ouço música para escovar os dentes. Eu ouço música quando dirijo o carro. Eu ouço música quando as dúvidas me atropelam. Eu ouço música para ilustrar a saudade. Eu ouço música para me vingar dos inimigos. Eu ouço música pra levitar sobre a iniquidade dos meus coirmãos, para me sentir menos humano. Eu ouço a música que ninguém mais quer ouvir. Eu ouço música para fazer amor. Eu ouço música para não sentir ódio. Eu ouço música para ficar pacificar. Eu ouço música para guerrear contra o medo. É preciso admitir, eu sou um bocado egoísta: eu ouço música para dançar às escondidas, para dar no pé, para salvar a própria pele, para acreditar nos recomeços.

Já me acusaram de ser um homem frio. Sou frio, mas não sou feito de lata, não sou feito de números, eu não almejo 100% de aproveitamento exigido pela vida corporativa, uma carreira brilhante e irrepreensível, o sucesso profissional a qualquer custo, uma existência escravizada em prol da mesmice e dos projetos da humanidade. Quero ter os meus próprios projetos. Entendam: toda a minha segurança provém da música. A balada é o meu prozac, é o uísque que me entorpece, a fêmea que me apetece, a prece que eu faço de joelhos para os ídolos imóveis da estante. “Elvis está voltando”, disse-me um rocker man no auge da embriaguez e da melancolia.

Ser pedra. Deitar. Rolar. Sentir-me uma carta fora do baralho, uma folha seca a se mover com o vento sobre um gramado, na franqueza de um outono promissor. Eu sou feito de música. É por isso que eu a ouço. É por isso que eu a canto. É por isso que eu a sinto. E é por isso que os pássaros se apiedam de mim sempre que pousam no quintal lá de casa. Eles sabem que cantar nos mantêm vivos.