Mário Palmério, o gênio esquecido

Mário Palmério, o gênio esquecido

Neste setembro de 2021 completam-se 25 anos de falecimento do escritor Mário Palmério. Esse mineiro de Monte Carmelo, prolífico em ideias, atuou em várias frentes: foi professor, educador, empreendedor, político, embaixador, musicista, compositor e romancista. Sua biografia é extensa demais para caber numa página da internet. Por esse motivo, trataremos aqui da sua figura como escritor. Aliás, que exímio escritor! É autor de dois romances publicados: o aclamado “Vila dos Confins” e “Chapadão do Bugre”. Segundo a Academia Brasileira de Letras (Palmério ingressou no sodalício em 1968, sucedendo a Guimarães Rosa na cadeira n. 2), trabalhou em três outros títulos, sem publicação em livro: “O Morro das Sete Voltas”, “As Confissões de um Assassinato Perfeito” e “Diário do Amazonas”. Como foi dito, escreveu também composições musicais, dentre elas a famosa guarânia “Saudade”, nos tempos em que fora embaixador no Paraguai, canção interpretada em português por artistas como Fagner, Joanna e Renato Teixeira:

“Se insistes em saber o que é saudade, terás que antes de tudo conhecer, sentir o que é querer, o que é ternura, ter por bem um grande amor, viver! Depois compreenderás o que é saudade, Depois de ter vivido um grande amor. Saudade é solidão, melancolia. É nostalgia, é recordar, sofrer!”

Vila dos Confins (Autêntica, 304 páginas)

Primeiro viver, depois expressar-se. Primeiro viver para compreender, para conceber; e só então ofertar essa experiência ao mundo. A realidade parece ser a fonte da inspiração da maioria dos escritores, mas em Mário Palmério ela atinge uma importância tal que mal a distinguimos da ficção. O fato de seus textos não serem puramente relatos históricos como os vemos nos livros didáticos se deve à habilidade do autor em expressar os acontecimentos de modo tão criativo, belo e artístico. Mas a veracidade dos fatos, em grande parte do seu texto, está ali, sempre presente e muito viva. Em “Vila dos Confins”, seu romance mais conhecido, temos a denúncia dos bastidores políticos de uma época; época essa contemporânea à que é narrada. O próprio autor fez uma declaração, registrada no livro “Seleta”, organizado por Ivan Cavalcanti Proença e publicado em 1974, dizendo que a obra “nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance”. Inclusive, no ano de lançamento do livro — 1956 — Palmério era deputado federal, assim como seu personagem, o deputado Paulo Santos. Num artigo publicado no jornal “O Globo” em 2015, o jornalista e memorialista Pedro Rogério Moreira relata que esteve com o romancista várias vezes num período em que este se autoexilou na Amazônia, a bordo do seu barco Fray Gaspar de Carvajal, porque tinha a necessidade de viver a história para depois contá-la. Pedro Rogério diz ter ouvido da própria boca de Palmério: “O viver é mais importante do que o escrever”.

A realidade que pulsa e perpassa “Vila dos Confins” irá culminar em sua segunda e última obra que conhecemos, o romance “Chapadão do Bugre”, publicado em 1965 pela editora José Olympio. Narrado em 3ª pessoa, a obra conta a história de José de Arimateia, um aprendiz de dentista, ou dentista prático, que comete um crime passional e foge da vila em que morava montando sua mula Camurça. O interessante trabalho de linguagem de Mário Palmério faz com que, ao lado da voz do narrador, coexista a consciência da mula. Esta parece, por instinto, tomar conhecimento do sentido dos acontecimentos a sua volta: os dramas, medos e anseios dos humanos, em especial os do seu dono. Essa consciência como que se funde com a voz do narrador.

Após o crime, ajudado por antigos amigos, José de Arimateia é acolhido pelo coronel Americão Barbosa em Santana do Boqueirão, a quem passa a servir e de quem recebe proteção. Mas seus perseguidores vão à sua caça.

A história narrada por Mário Palmério traça um paralelo com um drama acontecido na vida real: a história de um jagunço conhecido por Dente de Ouro que, no início do século 20, trabalhava para um coronel chamado Neca Medeiros, da cidade de Passos, MG. Mas o objetivo de Palmério vai além. Ele usa a ficção para narrar um evento insólito, tão real quanto inacreditável, daqueles que a gente pensa só ser possível na imaginação de um contador de histórias: o fato conhecido como a “Matança do Fórum” da cidade de Passos, acontecido em 26 de setembro de 1909.

As principais fontes que tratam desse episódio são os folhetins de “Os Contratadores da Morte”, organizados por Antonio Celestino, uma testemunha dos acontecimentos narrados, e o livro “Tocaia no Fórum: Violência e Modernidade”, de Antônio Grilo. Mas há reportagens em texto e vídeo sobre esse assunto disponíveis na internet. À época, a cidade tinha cerca de 20 mil habitantes, e era conhecida como capital do sudoeste mineiro. A liderança política do lugar era dividida entre duas famílias: os Medeiros e os Gomes. Os primeiros lideravam o Partido Lavourista, enquanto os últimos eram a cabeça do Partido Governista. Em 1904 o Partido Governista perdeu as eleições, e Manuel Lemos de Medeiros — o Neca Medeiros —, dos lavouristas, assumiu o cargo de presidente da Câmara e gerente executivo, o prefeito daquela época. Ele inicia seu governo no ano seguinte. Havia algum tempo, tinha se desentendido pessoal e juridicamente com um advogado e promotor da cidade de Monte Santo de Minas, Wenceslau Brás. Este que, tempos depois, se tornaria presidente da Província de Minas Gerais, cargo correspondente ao de governador do Estado. A partir de então, Neca Medeiros, figura suprema e temida por todos da cidade de Passos, começa a temer o poder nas mãos do antigo opositor e tenta uma aproximação. Em 1908, inaugura o primeiro grupo escolar da cidade e dá a ele o nome de Wenceslau Brás.

Mas as tentativas não surtem efeito. Instado pelo Partido Governista a pôr fim aos desmandos dos coronéis lavouristas e às supostas falsificações eleitorais na cidade, Wenceslau Brás envia a Passos uma volante policial sob comando do alferes Isidoro Correia de Lima com o objetivo de promover uma “limpeza” nas práticas criminais e eleitorais passenses. Durante sua estada, um crime acontece: a morte de João Modesto, causada por um lavourista de nome Juca Miranda. A família de João Modesto tem a certeza de que nada acontecerá. Afinal, quem poderia condenar um camarada do coronel Neca Medeiros? Mas, para surpresa geral, apesar de não receber nenhuma denúncia formal do crime, o alferes Isidoro convoca Neca e seu séquito a prestar depoimento no Fórum da cidade.

Chapadão do Bugre (Autêntica, 416 páginas)

O fato por si só — o coronel convocado a prestar depoimento — é o suficiente pra fazer com que a cidade pare e compareça diante do Fórum. Os convocados entram no prédio, a porta se fecha, e o primeiro a ser interrogado, Juca Miranda, autor do crime, é chamado. Ele entra na sala, senta-se à mesa diante do alferes e, a seu lado, de pé, está o soldado Furquim. Ao terminar seu depoimento, o delegado lhe apresenta um livro onde irá colher sua assinatura. Juca Miranda se curva à mesa para fazê-lo. Nesse momento, Furquim lhe dá uma machadada na cabeça. A intenção do alferes é esta, simples e direta: dá-se uma machadada na cabeça do depoente, separando-a do corpo, escondem-se o corpo e a cabeça no alçapão, limpa-se o sangue, que se esguichou para todos os lados, e chama-se o próximo depoente. Ele só não contava com que Furquim errasse o golpe.  Juca Miranda recebeu a machadada, que o feriu gravemente, mas não a ponto de matá-lo. Grita, sai correndo porta afora, sangue espirrando. Os outros levantam-se, assustados. Os soldados do alferes Isidoro vêm no encalço, armas nas mãos. Nesse momento, não se sabe quem atirou em quem. Sabe-se que Juca Miranda e o coronel Neca Medeiros não escaparam da matança. E sobrou até para um dos muitos curiosos que estavam do lado de fora, atraídos por fato tão inusitado: Antenor Magalhães levou um tiro e não resistiu.

Um estadunidense, George Davis, estava na cidade a trabalho para uma instalação de luz. Bastante apresentável em seu terno, lá estava ele no meio da multidão de curiosos quando recebe um balaço no peito e cai desfalecido. Entretanto, após a confusão, eis que se levanta: a bala atingira seu relógio de corrente, no bolso da frente do paletó, e ele, com medo de tudo aquilo, fingiu-se de morto até que passasse o alvoroço.

Antônio Grilo, em seu livro citado acima, diz que Wenceslau Brás, instigado pelos Gomes e outros chefes do Partido Governista, usou o seu poder de governador do Estado para ser o grande mandante do crime. Crime que abalou a cidade de tal forma que esta, da noite para o dia, esvaziou-se. Os moradores sumiram-se por um bom tempo.

Essa chacina foi a inspiração de Mário Palmério para escrever o seu último romance publicado. Sua literatura é, além de arte, instrumento de denúncia de práticas de um tempo que ele conheceu: coronelismo, manobras escusas para manipular eleições e o modus operandi da polícia que, incompetente na adoção de uma ética militar, acaba por adotar a ética do jagunço. Passado mais de um século, pode-se dizer que evoluímos?