Viver é esquisito

Viver é esquisito

Aos 51, nem penso em me aposentar. Também não sou uma besta completa. Há cerca de vinte e cinco anos, fiz um plano de previdência privada. Não dá pra confiar no governo. Estou me preparando, sim, para a velhice. E não sou daqueles sujeitos que sofrem ao ter que sair cedo de casa para trabalhar, como se isso fosse um baita sacrifício. Também não faço contagem regressiva a esperar por feriados prolongados, aliás, eles têm me provocado uma certa gastura e impaciência. Pode me chamar de chato, de impertinente: odeio carnaval, aquela alegria contagiante e o famigerado recesso semanal entre o Natal e o réveillon, quando parece que o mundo para. Estou exagerando? Tente adoecer nessa época do ano pra ver o que é bom pra tosse.

Coxinha é a sua mãe! Não me atazane com comentários maniqueístas, com insinuações maldosas, com manifestações de cunho político-partidários. Não estou me referindo às relações formais de trabalho entre patrões e empregados, ou às novas regras para aposentadoria no país, ou à falência do sistema previdenciário estatal. Não me interprete mal, estou falando de amor ao trabalho. Espero que você goste, minimamente, do que faz para garantir a sua subsistência no planeta. Caso contrário, estará desperdiçando a sua vida de uma forma bastante deplorável.

Provenho de uma família da classe média. Logo, ninguém poderá de me acusar de ter nascido em berço de ouro. Meu pai era bancário e foi aposentado compulsoriamente por ser portador da Doença de Chagas, uma moléstia crônica adquirida na infância, numa das casas de sapé em que morou com os meus avós, em confins recônditos do país. Minha mãe foi “sofressora”, ou melhor, professora de escola pública, considerada, até hoje, uma das profissões com salários mais aviltantes que se tem notícia. Prestes a completar 80 anos, a doce senhorinha goza de saúde regular e recebe ridículos 1500 reais de aposentadoria, após uma vida inteira dedicada a educar os filhos dos outros. Se eu não fosse tão educado, diria que esse país é uma merda.

Meu velho nunca foi um homem carinhoso. Apesar disso, era trabalhador ao extremo, dedicado, honesto, um ótimo provedor para a família. Com mister de rédea curta e safanões pedagógicos, eu e meus irmãos fomos instruídos, também, à base de afazeres laborais durante as férias escolares, além das obrigações cotidianas que éramos obrigados a cumprir dentro de casa. É óbvio que eu não gostava daquilo: limpar o banheiro, organizar a bagunça do quarto, lavar o carro da família, varrer o quintal, catar bosta do cachorro, cozinhar para os irmãos mais novos. Aprendi a capinar, construir cerca de arame, furar cisterna, derrubar árvore, cultivar a terra, lidar com gado, matar porco e frango. Meu pai sempre repetia que os serviços braçais eram importantes para que valorizássemos as profissões das outras pessoas. Foi um aprendizado de humildade que eu só viria a compreender anos mais tarde, depois de me tornar adulto, pai e cair no mercado de trabalho.

Acho que virei uma espécie mais mansa de workaholic. Por favor, não confundam isso com escravidão e devoção ao dinheiro. Já adquiri todo o patrimônio material de que preciso. Possuo casa própria e um carro meia-boca com sete anos de uso. Está à venda. Quer comprar? Sinceramente, alimento a ambição de, um dia, quem sabe, ir a pé para o trabalho, ou pedalando uma bicicleta ou usando qualquer forma decente de transporte coletivo. Não quero mais comprar automóvel. Não quero adquirir uma chácara de recreio. Não quero investir grana na bolsa de valores. Não quero arrematar uma “galinha morta”, um “novo e imperdível empreendimento imobiliário que vai valorizar à beça num curto espaço de tempo”. Quero continuar trabalhando o máximo que conseguir e que tiver vontade, faturando o suficiente para manter uma vida confortável, a fim de usufruir certos prazeres, como viajar. Quero viajar, conhecer gente, lugares, experimentar culturas diferentes.

Não tenho planos de morrer logo, portanto, se tudo correr bem, vou permanecer vivo tempo suficiente para perder vitalidade, definhar, adoecer e arriar de vez, feito a bateria do meu carro. Sim. Viver é esquisito. Mesmo assim e, por causa disso, até mesmo para manter a mente e o corpo minimamente saudáveis e ocupados com tribulações menos inquietantes do que as fatigadoras crises existencialistas, espero trabalhar até morrer ou ficar louco. O que vier primeiro eu topo. Afinal, uma coisa leva à outra: o ócio conduz ao pensamento e, pensar demais, todo mundo já sabe, faz um mal danado à saúde.