Amiga-irmã, amigo de infância, amigo distante, amigo grudento. São eles que remendam o ânimo

Amiga-irmã, amigo de infância, amigo distante, amigo grudento. São eles que remendam o ânimo

Ando nesta fase da vida em que, vez ou outra, abro uma velha caixa de cartas. Essa coisa de imergir em coleções de antigas miudezas (cartas, figurinhas, selos, broches…) tem um quê de “cagueta” da idade. A gente se denuncia um pouco a cada vez que dá um suspiro nostálgico.

As cartas — algumas longuíssimas, como se à época não houvesse telefone — contam desventuras amorosas de uma adolescência sofrida e intensa (uma redundância: alguma adolescência não o é?). Pergunto-me por que usávamos códigos no lugar do nome de nossos “affairs” e por que colávamos tantos adesivos até que a mensagem ficasse quase ilegível. Mas perder a compreensão do que motivava nossos eus passados não deixa de ser uma prova de que o tempo é um bom seletor de memórias.

A delícia de revirar os papeis amarelados é ver que parte dos destinatários continua tão presente no cotidiano. São aqueles poucos e bons a quem raramente se pode batizar, com todas as honrarias do nome, de “amigos”. A eles, juntaram-se alguns poucos outros, que cada um ao seu modo preenche os dias com peças singulares que tecem o mosaico trôpego e fascinante do percurso.

O jornalista Paulo Sant´Ana, um inconformado com a voracidade da roda-viva, esbravejou certa vez: “Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos”.

É isso. Queria que todos os meus amigos estivessem e falassem comigo o tempo inteiro. Não por redes sociais — que impiedosamente arruinaram as cartas — mas ao vivo, sentindo o hálito acalorado de quando estamos mergulhados no cosmo de uma conversa infinita. Queria contar-lhes como meu ombro dói quando escrevo no quadro, ou mostrar-lhes como meu olho direito treme quando estou com raiva.

Queria que o amigo-cientista, aquele que sempre racionaliza e metrifica qualquer bobagem, me lembrasse o tempo todo que é quase sempre possível objetivar o raciocínio para se tomar a melhor decisão. Mas também queria que, naqueles raros casos nos quais isso não fosse possível, ele estivesse ao meu lado para sentir a delícia de espiar o universo dos sentimentos aleatórios e sem sentido.

Queria que a amiga-alto-astral me desse uma bofetada na cara quando eu quisesse esmorecer, mas que eu também pudesse lhe oferecer o ombro nos instantes quando ela se desequilibrasse no limite entre a fragilidade e a voz falsamente confiante.

Queria que o amigo-filósofo me banhasse de cultura e reflexão durante os demorados percursos de carro entre um estresse e outro, tornando-me maior, mais sábia, mais firme, mais ponderada. E que, ao som de seu verbo, eu me metesse a enxergar os dias como parte de uma engrenagem maior, minimizando qualquer desconcerto ao imergir em seus ares aristotélicos. Mas também queria contar-lhe piadas sem graça ou cantarolar em seu ouvido uma música boba, para que ele nunca se esquecesse de que a vida é pouco séria, afinal.

Queria o amigo-tecnológico, que me salvasse das trapalhadas com a modernidade; a comilona, para dividir a alegria e a culpa de comer o mundo inteiro; a saudável, para me puxar a orelha depois dessas trampolinices; a engajada, para me lembrar de que ninguém vive sozinho e que não dá pra fechar os olhos para o outro; o sincero, para me fazer tirar aquele batom ridículo ou largar aquele emprego merreca; o viajante, para vez ou outra descobrirmos fascinantes recônditos inexplorados… Queria todos, o tempo todo.

Mas amigos também têm suas vidas, compulsões, estresses, medos, compromissos… E me consolo em saber que, por vezes, terei o privilégio de roubar umas horas do tempo deles e contribuir com uma pequena peça de mosaico para suas vidas também. Amigo é essa coisa curiosa, que está com você apenas porque quer. Com o tempo, tornam-se mais raros, mas aqueles remanescentes se fortificam na permanência. Amizade é dar a mão e oferecer o braço antes que você saiba que precisa dele. É ser a corda que aparece como um milagre no fundo do poço; o beijo carinhoso no meio dos cabelos que se embranquecem a cada dia; o dedo que desvia o percurso da lágrima; o colo que sempre está ali, mesmo quando não está…

Amigo é essa coisa que faz render uma crônica inteira e ainda deixa a sensação de que nem o maior dos pergaminhos seria suficiente para exprimir sua definição.