Não chore por mim, Valentina

Não chore por mim, Valentina

Eram 11 dias do mês de setembro de 2013. Enquanto meu amor dormia, exausta de mim e do meu mau humor, no Hotel Losermanos, eu caminhava com Valentina, uma prostituta portenha que conheci quando passeava pelo famoso Cemitério da Recoleta em Buenos Aires, considerado por todos — exceto pelos mortos, é claro — um dos mais belos e portentosos cemitérios do planeta. A moça cumpria o ritual de visitar os túmulos de Evita Perón (um dos mais modestos do pedaço, aliás, considerando a predominante opulência arquitetônico-escultural das catacumbas), do soldado desconhecido, da prostituta desconhecida e da dignidade desconhecida. É isso: a vida é uma guerra diuturna, seus cães.

Após excursionarmos entre turistas boquiabertos, lagartixas boquiabertas espreitando borboletas, tocos de velas derretidas, vasos com flores despetaladas e mausoléus espetaculares sobre o aglomerado subterrâneo de caveiras ilustres, pensamentos reverberavam a mil dentro da minha cachola: mármore especialmente trazido da Itália (alguém comentou impressionado com o esmero dos antepassados); fotos emboloradas; estátuas espiando-me com olhares assustadores; pombos com diarreia a sobrevoarem o perímetro (“van a cagar en nosotros?”, um niño quis saber da mãe, com muita pertinência); a quase certa absolvição do deputado Lereia pelos comparsas da Câmara; o tragicômico projeto de evangelização dos puteiros proposto por um deputado goiano, o Pai da Cura Gay; as notas de pesos argentinos falsificadas que um taxista me repassou; a grave ameaça à saúde de meu pai; a grave ameaça do presidente Obama em invadir a Síria, supostamente por causa da utilização de armas químicas por Bashar al-Assad; a beleza memorável de Valentina, muito mais memorável que a soma de todos aqueles mausoléus juntos (que meu amor, a cochilar no hotel, não leia isto).

“Yo quería un poco de gas sarín para asfixiar ciertos recuerdos vívidos en mi memoria”, ela brincou valendo-se de um carismático senso de humor negro que me fez lembrar Paulo Leminski. Mesmo com a companhia leve, agradável e inusitada de Valentina naquela caminhada, enquanto ladeávamos a muralha vermelho-tijolo do Cemitério da Recoleta, todo aquele toró de pensamentos me incomodava profundamente, em especial, a lembrança dos 12 anos desde o ataque terrorista às torres gêmeas em Nova York.

Enquanto chupávamos o famoso sorvete do Freddo — sabor amargo-da-vida — Valentina confidenciou-me que não se lembrava bem dos detalhes do atentado ao World Trade Center, porque era criança, não caíra ainda na fuleiragem forçada, embora já vivesse o seu terror particular ao ser abusada pelo padrasto, carismático pastor de uma remota congregação religiosa no bairro pobre do Caminito. “Yo quería un avion derrocar mi pasado como a una torre”, ela sorriu a me mostrar uma dentição perfeita e uma analogia irreverente.

Um pouco mais adiante, quando passávamos em frente a Igreja Del Pilar, presenciamos uma cena interessante: uma garotinha de aproximadamente 4 anos de idade, cuja madre mendigava nos arredores daquele agradável bairro chique com ares europeus, tropeçou, derrubando o pacote de sobras de batatas fritas frias, certamente um agrado d’algum turista de barriga cheia recém saído de um shopping center (é incrível como as sanduicherias ao estilo fast-food proliferam mais do que o lixo que produzem, do que as moscas e do que o ódio racial).

Odiei muito aquilo tudo: a menina chorava inconsolável, estatelada de bruços sobre a calçada, estendendo a mãozinha encardida, dramática como se fora uma atriz mirim de ópera, a atuar no suntuoso, magnífico Teatro Cólon, a lamentar o terrível incidente em que perdera uma saborosa sobra de comida gentilmente cedida por terceiros, e sobre a qual um bando de pombos sem coração já se apressava devorar.

Ex-poeta que era e ainda sou, não fui capaz de conter que uma inspiração brotasse dentro da minha mente, já assoberbada com tantos pensamentos, desejos e dilemas, uns mais, outros menos importantes. Então, intimamente, imitei Valentina, fiz uma analogia entre aquele punhado de batatas fritas frias esparramadas na sarjeta e as torres gêmeas tombadas, pulverizadas na América do Norte, há exatos 12 anos. Guardadas as devidas proporções, tudo era um drama. Embora conhecesse quase nada de sua vida, fui inconveniente, imprudente e até autoritário com a condoída Valentina, pois ela fez menção de socorrer a pequena moradora de rua para presenteá-la — agora, sim — com uma porção de batatas fritas frescas e quentinhas.

Valendo-me de um portunhol deplorável, adverti a minha inusitada acompanhante de passeio, cuja beleza, por muito pouco, quase parava um quarteirão inteiro da Recoleta: “Mi cara, cumpre que nosotros deixemos la niña entregue a su propria suerte. És bueno que la chica aprienda que la vida és mismo dura, injusta, cheia de decepciones, pierdas y gaños, como, por exemplo, tropieçar y perder las batatas fritas para un punhado de pombitas cagantes, ou morir enterrada por uno ataque terrorista, ou convertirse en una prostituta como usted. Enfim, no chore por ela, por ti, mui menos por mi, Valentina!”.

Irritada com o comentário, ela partiu. Provavelmente, para dormir também.