Eu comeria o seu cérebro

Eu comeria o seu cérebro

Não dá pra ser feliz. Não dá pra ser plenamente feliz. Temo que isso nunca me será possível, pois, eu conjugo os sonhos. E sonhar, foi você quem disse, é uma “utopia tola”. Podia ter ficado fica só na “utopia”. Dava pra evitar o adjetivo “tola”, porém, assim mesmo, você fez questão de utilizá-lo. Certamente, uma estratégia maniqueísta para que eu me sentisse diminuído, deslocado, um adulto contido com camisa-de-força dentro de um quadrado, um homem imerso numa crise existencial sem precedentes, um viajante do tempo de volta ao meninote ingênuo vestido com bermuda, sorrisão na cara e muitos sonhos no coração. “No coração, não; na mente.” Você foi didática, enfática, pragmática e broxante ao ressaltar que o órgão vital com o qual os seres humanos pensam e sonham não é o coração, muito menos, a genitália. “Massa cinzenta, garoto. Massa cinzenta…”, as palavras ecoaram sem brilho nenhum dentro dos seus olhinhos de peixe morto. O amor parecia mesmo liquidado.

Aliás, se não me trai a memória desse órgão tão pensante e tão sonhador, quando nós nos conhecemos, você disse que comeria o meu cérebro. Pensei que estivesse bêbada. Ou drogada. Ou surtada. Ou menstruada. TPM ninguém sabe. Fiquei estupefato. Fui pego de surpresa durante um porre coletivo civilizado num vernissage. Achei o comentário bizarro, pois, levei a coisa toda ao pé-da-letra, no sentido literal. Eu demorei a sacar que aquilo era uma espécie de elogio. Isso, sim, foi muita tolice da minha parte. Pintou uma suspeita boba de canibalismo, de mutilação, de magia negra, de ritual satânico, de sandice ou coisa parecida. Apesar da suposta evolução da humanidade, as pessoas pareciam doentes como nunca, as doidas varridas de sempre. Volta e meia, aprontavam certas atrocidades umas contra as outras, coisas difíceis de conceber.

Passaram-se meses. Eu detestava aquilo, no entanto, você me intimou a discutirmos a relação. Mulheres são boas nisso. Seres superiores são as mulheres. O papo se deu no “Barrabás”. Lembro-me que você já estava meio alta de tanto tomar Cuspe, a língua destravada, uma sopa de neurônios fervilhando em banho-maria, aquele poço de sinceridade mais cortante que fio de navalha. Então, você pediu emprestada a caneta ao garçom. Pensei que fosse cravá-la no meu pescoço. Outro imaturo erro de avaliação. Será que um dia vou crescer?

Você começou a anotar num guardanapo, com letras garrafais, depois de se chapar com tanto rum, as coisas que você faria, se realmente você me amasse. Receio que os leitores dessa estéril história (Por acaso, há algum de vocês aí do outro lado?) ficarão frustrados com a falta do rascunho original por você redigido naquela noite no “Barrabás”. Ocorre que amassei o famigerado guardanapo e o atirei na boca de um rato que nos observava da sarjeta, perplexo com a sua franqueza e a minha cara de jiló. Palavras amargas quase sempre fazem estragos no meu rosto.

É claro que me enfezei. É evidente que, em mais uma prova de fraqueza, deixei a conta para que ela pagasse. Era o mínimo que eu podia fazer. Cuspir no prato em que tinha comido petiscos deliciosos? Estapear aquela carinha-de-bumbum-de-bebê, cuja tez era tão macia e suave quanto pele-de-pêssego? Esbravejar insultos? Ora, ninguém precisava tomar conhecimento de uma miséria particular. Nenhum daqueles baixos predicativos combinava com o meu espírito poético-libertário.

“As coisas que eu faria, se realmente eu amasse você. (Era esse o título da sua lista. Precisava de um título? Precisava mesmo de uma lista, mocinha?) Eu comeria o seu cérebro. (Você começava assim: sendo repetitiva). Vegana assumida, eu mataria uma galinha com as minhas próprias mãos, para lhe preparar um guisado. A despeito da hérnia de disco na lombar, eu praticaria o Kama Sutra de cabo a rabo. Por falar em música, eu não apenas tocaria Raul, como punhetas homéricas com direito a bis. Eu daria pra você mais do que chuchu na serra, numa safra recorde jamais vista na história do nosso mundinho-a-dois. Eu fumaria charutos com a acolhedora. Eu tossiria os seus gametas na ‘Hora do Ângelus’ (Ajoelhou, tem que rezar). Eu voltaria a comer carne vermelha e seria o fim da anemia. Eu daria o sangue por você, boy. Eu aprenderia a sussurrar ‘trinta e três’, com os meus pequenos lábios. Eu abandonaria o vício de frequentar os sebos. Eu leria ‘Finnegans Wake’ até o fim. Eu via o diabo, mas, nunca mais via TV. Eu teria um filho da puta com você. Eu roubaria um banco de sêmen. A minha presença na sua vida seria mais leve do que um suspiro, eu praticamente passaria despercebida, pode crer. Eu emagreceria, eu engordaria cinco quilos, eu sobreviveria ao efeito sanfona. Eu seria doce como pudim de leite condensado, a sua sobremesa preferida. Eu recitaria o ‘Soneto da Fidelidade’ todos os dias pela manhã, só pra fazer uma média com você. Eu seria amor da sua vida, cara. E ele só não seria durável, infinito e imortal, posto que seria chama.”

Quando você se deu conta, eu já dobrava a esquina para nunca mais voltar.