Woody Allen através de um espelho sombrio Foto / Denis Makarenko

Woody Allen através de um espelho sombrio

Em 1991, ela encontra fotos sensuais, levemente pornográficas e insinuantes, da sua filha adotiva. O mundo desaba. Ela perde o chão. Imagina estar numa cena de cinema, em que tudo é falso e real simultaneamente. Sim, deve haver alguma câmera escondida filmando. Precisa existir algum diretor conduzindo essa trama de horror. Só pode ser uma figuração, Photoshop ou uma brincadeira de mau gosto de alguém. Uma montagem. Uma falácia. Uma fraude. Mas, infelizmente, não é. Um golpe da vida ludibriando a invenção da arte.

Mia Farrow, a esposa, o ama. Admiração e desejo imensos. Ou pelo menos acredita que o que sentia por ele, até esse pavoroso instante, tenha sido amor. Mas ela não sabe muito bem o que são esses sentimentos. Ou sabe, mas prefere esconder. Ela teve uma vida complicada. Conturbada. Conflituosa. É cheia de cicatrizes ainda abertas. Hoje fantasia que o amor seja exclusivamente uma forma de altruísmo, embora também desconfie dessa sensação. Para continuar caminhando, teve que inventar uma forma peculiar de viver. Fabulou que vivia em uma família feliz. Com diversas culturas, religiões, crenças e etnias diferentes e engrandecedoras. Considerava-se afortunada até o instante em que segura essas fotos deploráveis encontradas nas coisas de seu marido.

Ela nunca foi feliz, mas nunca teve tempo para pensar nisso. Teve sempre que atuar, no cinema, para os jornais, na própria casa. Fez o papel de uma grande humanista, com um coração enorme capaz de agregar muitos filhos. Agora ela sente toda essa invenção desabar.

Eles estão juntos há 12 anos. São 12 anos de muitas trocas. Cuidados. Encantos. Desencontros. Ela nunca imaginou que alguém poderia novamente se interessar pelo seu brilho, um tanto apagado. Sim, ela é bonita, inteligente, atraente, mas tem um monte de filhos e muitas histórias dolorosas nos ombros. Quem toparia um romance? Um casamento? Uma vida a dois? Uma vida a “muitos”? Por isso ela o amou. Ela admirava sua afobação, sua urgência, sua loucura.

Ela já havia sido casada por duas vezes. Ainda jovem, muito jovem, antes de completar 19 anos, e ainda um tanto virginal, viu-se comprometida com a grande personalidade da época. A voz negra na pessoa branca. Ou o marketing perfeito produzido por uma cultura extremamente preconceituosa. Frank Sinatra. Ela recobra os sentimentos de quando ainda era muito jovem. Uma menina bastante ingênua enfeitiçada pelos lindos olhos azuis do grande mito. Cativada pelo assédio de um conquistador profissional. Enamorada pela performance que tocava sua alma pueril. Porém, no calor da noite, no calor dos corpos, nunca houve o encontro que o cinema e os sonhos idealizavam. Eles nunca souberam atuar juntos na ardência da cama. E foi por isso, pela desarmonia dolorosa dos desencontros, que ela se separou, já com dois filhos, de Sinatra. Ousou partir em busca de uma música que seu corpo pudesse dançar.

Outra canção foi tocada durante seu segundo casamento. Um grande pianista surgiu para abalar e encantar sua vida. Um talentoso produtor de emoções do cinema. As memórias do mundo não seriam as mesmas se não fossem embaladas pelas melodias. E ele é um dos maiores compositores de todos os tempos. Todos são seduzidos pela magia de suas criações. Ela, claro, também se embevece. E muito. E eles, se iludindo um ao outro, decidem tentar uma vida a dois.

E perpetuam essa doce ilusão concebendo filhos gêmeos. Alegria? Júbilo? Gozo? Não. Eles também não são felizes. Os compromissos da vida, e dos corpos, os afastam. As pequenas verdades. Muitas viagens na vida dos dois. Também muito assédio. Inúmeros eventos disfarçando o amor que já não sentem mais. Os olhos começam a brilhar pela possibilidade de um outro, que ainda desconhecem, mas que sempre cortejam. Ela sugere ou imagina uma traição do marido. Não pode suportar. Desatino. Eles então se separam. Ela se encontra novamente na contingência dos futuros e improváveis encontros.

E foi aí, nesse momento, que o grande cineasta a convida para sair. Sua alma o abraça. Ele, com todas as suas manias e vícios, também resolve embarcar nessa grande aventura. Nessa fantasiosa epopeia. Nesse fascinante roteiro. O sorriso volta repentinamente aos seus olhares. O arrebatamento volta aos seus corpos. A emoção toma conta dos seus novos sonhos.

Doze anos mais tarde, lágrimas de desespero, de loucura e de pavor preenchem sua essência. Ela já não suporta mais o tanto que sente naquele momento. É um estarrecimento, um horror, um temor completo da própria existência. Um inteiro desnorteio do real, do simbólico, do imaginário. Ela segura e execra as fotos abjetas e pornográficas da filha adotiva tiradas pelo próprio marido.

Ela também o ama. São 12 anos de admiração, encanto e estranhamento. Ele é casado com sua mãe adotiva. Ele foi — ela tem consciência — um dos responsáveis pela sua criação. Pela sua constituição como mulher. Por lhe apresentar o vale de lágrimas, de medos, de crenças e de desejos irrealizáveis que é a vida. Essa vida que neste momento ela quer muito e desesperadamente viver ao seu lado. Agora de uma forma exclusiva e excepcional.

Soon-Yi Previn sabe que disputa um amor. E que esse amor a deseja também. Concebe, ou imagina, que em breve sua mãe deixará de exercer seu papel. Ela terá que matá-la. Terá que destituí-la de seu posto materno. Terá que reinventar seu próprio mito. Será isso possível? Será isso permitido? Será que eles vão conseguir se afastar do olhar do outro ou será que é por esse olhar que estão justamente cometendo esse delito bíblico? A verdade é que ela sempre viverá com essa dúvida.

Adotada pelo ex-marido da mãe, o famoso pianista, nunca o admirou, embora talvez tivesse visto nele a figura de pai. Estranho? Plausível? Concebível? Vai saber. Ele viajava constantemente. E, afinal, preferia os filhos gêmeos que teve. Ela sempre se compadeceu pela predileção da consanguinidade. Sofreu muito com isso. Ele, o pianista, aos poucos foi desaparecendo da própria criação. Acabou sendo substituído por outro modelo, agora bem mais presente, encantador e obsceno. Mas isso tudo é uma grande confusão na sua mente.

Ela admira enormemente o marido atual de sua mãe. O famigerado astro. O judeu neurótico, risível e atormentado. O único que enxerga a alma humana: dilacerada, ridícula e maliciosa. Ela o reinventa repetidamente, modelando-o em seus mais secretos sonhos.

Soon-Yi já não sabe mais como vê-lo. Pai? Padrasto? Herói? Homem? Ela não se lembra mais do pai biológico. Nem se recorda mais se o conheceu na Coreia. Não há figura paterna alguma em seu universo simbólico. Tampouco tem relação afetiva com aquele que lhe dá o seu
sobrenome. Previn. Coreana-americana, carrega uma cultura judaica totalmente estrangeira.

Agora, perturbada, perdida, pervertida, ela olha para esse novo homem que caminha ao lado de sua mãe adotiva. Esse, que ainda não é seu, mas que ela passa a desejar acima de tudo. Ela já não consegue mais se separar do seu Édipo inventado. Sente palpitações de angústia, de desejo e de pavor reiteradamente. Excita-se ao vê-lo, e reflete sobre a possibilidade de um pecado: “Será que é preciso interditar esse amor? Essa vontade? Esse demônio? Essa única possibilidade de ser feliz? Não! Mil vezes não”. Ela passa a olhá-lo diferente, agora não mais tão proibido, segundo sua convicção. Segundo sua fé. Segundo suas invenções.

Qual seria, portanto, o verdadeiro amor que ela agora fabula? Saberia ela o que é o amor? Seria amor ou culpa o que ela deveras sente por essa mulher que a salvou da pobreza de seus seis primeiros anos de vida na Coreia? Será amor o que ela sente pelos seus irmãos? Ou será que amor é a própria competição que enfrenta neste instante? Ela decide, então, com toda a maturidade de seus 19 anos, mergulhar no próprio devaneio. Ela toma o pai para si. Não se recorda, em vigília, de nenhuma vez que tenha se arrependido dessa decisão.

Eles se envolvem. Ela permite que seu corpo seja deflorado por ele. Só por ele. Só para ele. E eles se permitem muito mais. Libertação. Profanação. Transgressão. Ela posa nua uma vez. Várias vezes. Todas as vezes. Cinema. Vida. Arte. Devassidão. Pornografia. Ela se entrega sem pudores. Nunca foi chupada com tanta volúpia. Nunca sentiu esse gozo mitológico. Esse ato de derrotar sua mãe lhe causa ainda mais prazer.

Ele a ama. Ele ama a atriz e a mulher. Ele também ama os filhos, e os filhos adotivos dela. Considera alguns carinhosamente como seus. Ele também ama todas as mulheres! É conhecido como o diretor das mulheres, porque supostamente entenderia angústias, anseios, medos. E seria capaz de despertar nelas genialidade, engenhosidade e excelência nas suas interpretações. Ele acima de tudo ama a invenção da vida e da obra de arte.

Ele admira a arte da esposa. Mais de uma década de belas atuações, incríveis encontros e maravilhosas trocas. Eles fizeram muito sucesso juntos. Brilharam nas telas da sétima arte em todos os cantos do mundo. Foram cultuados, idolatrados, invejados. Prêmios. Distinções. Reconhecimento. Mas, na intimidade do casal, foram somente medíocres.

Ele compreende que o desejo em relação a ela terminou. A labuta diária para suprir a carência dos dois torna-se um esforço inútil. Ele já não a quer, não pode e não consegue, mas precisa viver novamente um amor. É viciado nessa droga. E assim seus olhos começam a se encantar por uma menina. Que parecia muito distante. Cinematográfica. Mágica. Um grande tabu, e por isso tão fascinante. Ele reflete muito sobre essa questão. Sobre essa interdição. Sonha, mas sempre tem muitos pesadelos e não imagina o que pode acontecer. Tem somente certeza de que não ama mais a mulher que está a seu lado. E que deseja, deseja loucamente o proibido. Mas seria esse objeto de cobiça inalcançável aos olhos de quem?

Woody não é casado oficialmente com Mia. Também não foi ele quem adotou essa ninfeta. Não mora com a esposa, nem nunca coabitaram. Cada um vive na sua casa, apesar das visitas frequentes. Ele, então, passa a não ver problema algum em sentir esse arrebatamento, cada vez maior e mais carnal, por essa menina. Ele se convence da virtude superior do amor. Admira os atrativos e a magia dos pequenos olhos melancólicos, sombrios e profundos dessa menina-mulher. Anseia pela boca pudica, despretensiosa e humilde da sua reinvenção de Lolita. Apaixona-se por esse singelo sorriso repleto de histórias. “Sim, eu quero. Sim, eu posso. Sim, sim, sim.”

E vivendo esse devaneio deslumbrante de sentimentos, e de muito tesão, entrega-se inteiramente à fruição. Ele se deixa seduzir. Ele se permite transcender a culpa e desafiar os deuses.

Mas será que ele corrompeu a menina usando essa posição de autoridade? Será que ele a convenceu a amá-lo como homem? Será que ele cometeu o suposto e histórico delito do incesto? Não sabem. Sabem apenas que o carinho foi lentamente se transformando em carícias. Íntimas. Que os sorrisos passaram a ser maliciosos. Que o afeto se metamorfoseou em tesão. Desconhecem se a culpa ou a bênção dessa união foi por conta do vinho, da música ou do filme de Bergman de que tanto gostavam. E eles se entregam ao desconhecido. Interditos, se amam. Despidos, aguardam pela condenação do pecado de amar.