Mississippi: eu, Faulkner e Jack Daniel’s

Pense o amigo leitor no Mississippi (o estado, não o rio, bem entendido). Isto mesmo, meus caros: esqueçamos Trump, o Estado Islâmico, os tempos líquidos e nos fixemos naqueles pouco mais de 120.000 quilômetros quadrados.

Concentração, portanto. Posição de lótus, respiração controlada, inspirem, expirem. E o que nos vem à mente? Música, claro, pois que lá nasceram B.B. King, Elmore James, Howlin’ Wolf, John Lee Hooker e o pai de todos eles, Robert Johnson, isso pra citar somente os mais famosos entre centenas ou mesmo milhares de músicos de blues, aqueles que acendem a luz de alerta no cérebro dos aficionados (a propósito: o rei Elvis também nasceu no Mississippi e só aos 13 anos se mudou para Memphis, Tennessee, bem ali pertinho). No chamado Delta do Mississippi, em um espaço geográfico incrivelmente pequeno, o blues tornou-se adulto sério, respeitado e pagador de impostos.

O que mais? Ah, sim, conflitos raciais, Ku Klux Klan, “Mississippi em Chamas”, imagens de policiais acompanhando estudantes negros às aulas. E mais nada, tenho certeza. Políticos famosos? Nada, nadica. (Houve um grande juiz da Suprema Corte, Hugo Black, mas eu só sei disso porque perco um tempo enorme estudando decisões judiciais de outros países. É estranho, bem sei, mas eu poderia estar roubando, eu poderia estar matando, e no entanto…) Mas divago. Ajudem-me aqui, meus amigos: quais as suas cidades mais conhecidas? Aposto um steamboat que só aqueles com TOC geográfico conseguirão se lembrar de alguma — aliás, a capital e maior cidade, Jackson, tem, me diz o Google, somente cerca de 170.000 habitantes.

Pois há — boquiabro-me! — algo mais entre o Céu, a Terra e o Mississippi: escritores. Sim, minha gente, escritores aos montes, às pencas, brotando como cardumes de peixes descontrolados no “Great River”, como chamam o rio Mississippi lá naqueles confins (e aqui uma dica: pensar no rio ou mesmo no estado é mais prazeroso ouvindo “Ol’ Man River” cantada por Frank Sinatra — “Ol’Man River” pelo “Ol’ Blue Eyes”, digamos assim, e talvez um Jack Daniel’s, feito no vizinho Tennessee, também reforce a concentração). Gente que escreve, e escreve bem, eis o que a terra passou a produzir depois que a cultura do algodão se esfumou. Tempos difíceis requerem diligência e arte, é certo.

Muitos são conhecidos apenas pelos americanos, mas outros tantos estão em estantes mundo afora. Vejamos: Tennessee Williams (eu sei, eu sei, o nome nos confunde), Eudora Welty, Donna Tartt, Richard Wright, Richard Ford e, sobretudo, William Faulkner, o grande Faulkner de Oxford, Mississippi, chamada pelos íntimos de Yoknapatawpha, todos eles espantosamente nascidos no estado com a menor renda per capita dos Estados Unidos. Não, Oprah Winfrey, que viu a luz em Kosciusko, não entra na lista.

Leio e releio Faulkner constantemente, é faina para a vida toda. Se vocês não seguem essa dieta, estão perdendo um dos pontos altos da humanidade (Faulkner, aquedutos romanos, decisões da Suprema Corte americana, Capela Sistina, suítes de Bach para violoncelo, filmes de Sergio Leone, Ava Gardner, dribles do Garrincha, essas coisas): o homem vivia meio encharcado no seu estranho Deep South e ainda assim nos deixou uns três ou quatro romances que estão entre os melhores já escritos. O Mississippi, e por extensão todo o Sul, pinga de cada um deles. Gosto especialmente de “Absalão, Absalão!”, cheio de ódios e… glicínias. “Foi um verão de glicínias.” “It was a summer of wistaria.” “Once there was a summer of wistaria.” Faulkner e as glicínias, ainda escreverei uma tese sobre isso. Mas me perco de novo. O que eu dizia? Sim, sim, Faulkner. Se há escritores que são epítomes de seus países ou regiões, William Faulkner é um deles. Nosso homem no Mississippi bebia diligentemente seus uísques com constância e sem moderação e — apesar ou por causa disso? — retratou como ninguém o tal Deep South dos EUA: racismo e ódio, mas também cheiros, sons, vidas familiares, angústias pessoais, arrependimentos, tudo sedimentado em histórias que são metáforas da história do próprio Sul. Vozes densas e profundas ecoam dos seus romances, misturando passado e presente num alarido às vezes confuso e brutalmente belo (“O passado nunca é passado”, ele dizia). Tanta coisa boa no mundo para se fazer — ler o gótico Faulkner está na lista top ten — e ainda assim perdemos tempo brigando no Facebook. (Gótico? Sim, gótico, pesquisem porque não vou explicar, a paciência e o espaço são curtos.) Nossa época é realmente ingrata — amplas possibilidades e ínfimo tempo; de qualquer modo, que Deus te dê boa saúde, Mississippi.

Parênteses para nova divagação. Há outro escritor que só aqueles com várias passagens em juntas médicas conhecem, Shelby Foote, autor de magníficos livros sobre a Guerra Civil americana, infelizmente ainda não traduzidos aqui. Nasceu à beira do Mighty Mississippi, em Greenville. Cito-o porque outro dia assisti ao documentário “The Civil War” — vejam, vejam! —, de Ken Burns, e Foote, um dos entrevistados no filme, aparece várias vezes e rouba a cena, para usar o clichê. Pesquisei a coisa toda e apurei que ele se tornou tão conhecido por causa dessas passagens — o homem ri, chora, fala pelos cotovelos e mostra saber tudo sobre a Guerra — que, já bem entrado nos 70 e tantos anos, ficou rico porque seus livros passaram então a ser vendidos aos milhares. O segredo da imagem que projeta e, sim, nos fascina? Leiam sobre “sprezzatura” e “southern honor” e entenderão. Divagação encerrada.

É estranho? Muito. Mas talvez seja melhor não pensar muito nos curiosos caminhos da arte; se pensarmos, o motor cerebral pode bater pino — e a coisa com certeza degringola bastante quando aprendemos que logo ali ao lado, em Monroeville, Alabama, Truman Capote e Harper Lee foram vizinhos nos anos 1930, quando a cidade não tinha mais do que 1.500 sofredoras almas lutando contra a depressão econômica, algo como, sei lá, Graciliano Ramos e Clarice Lispector sendo amigos de infância nas minúsculas Quebrangulo ou Palmeira dos Índios. Confesso? Confesso: nasci neste mui nobre, leal e heroico Goiás, mas invejo profundamente aqueles que vêm de Oxford ou Quebrangulo.

Por que diabos escrevo tudo isto? Não sei bem. Ou antes: o motivo principal é que o Carlos Wilian (editor da Bula) vive me extorquindo textos com elogios falsos e de vez em quando eu preciso jogar alguns artigos na sua direção. Há outros: é madrugada, a aurora está longe (ainda há auroras?), o vinho acabou, ars longa e vita brevis, vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Ou talvez o motivo tenha um quê de vagas fantasias sobre ter nascido no Mississippi e ser escritor alcoólatra… Não, quem sabe seja alguma forma de wanderlust, doença que me ataca às terças e quintas? Pode ser: li há poucos dias um livro de Frances Mayes, aquela que ficou famosa com “Sob o Sol da Toscana”, creio que se chama “Under Magnolia” (a magnólia e a glicínia são símbolos do Sul), e ela, depois de tantos anos vivendo na Itália, diz, em certo momento, ao marido: “I want to move back to the South”. “I want to move back to the South” é, reconheçam, uma janela aberta para o infinito, e, percebi espantado, a minha vida tem sido não uma busca por riqueza e poder, mas por algo menos tangível: o que procuro é a possibilidade de poder dizer, com ar nonchalant, “I want to move back to the South”. Thomas Bernhard tinha a sua “direção contrária”, já eu me contentaria, ah, como me contentaria, com “I want to move back to the South”. Adquiri a convicção, com a força que só os que estão à beira do precipício têm, de que me mudar para o Sul é a solução para o caos que me cerca.

É isso. Isso ou me veio certa vontade de ler Faulkner na sua Oxford. “Serius est quam cogitas”, nos dizem antigos relógios solares, e repito a mim mesmo que preciso me preparar seriamente para poder dizer, na velhice que já bate à porta, “Quando visitei a casa de Faulkner…”, “Entre Clarksdale e Oxford há um bistrozinho excepcional…”, essas coisas que muito desejamos, com vã esperança de que se cumpram, quando percebemos que temos “apenas duas mãos e o sentimento do mundo”.

E sim, ainda há auroras. Thanks, Mississippi.