Será que o meu coração já virou pedra?

Será que o meu coração já virou pedra?

De saco cheio com a humanidade. Será que o meu coração já virou pedra? Só pode. Não o fumem, viciados! Quanto tempo perdido. Procuraram. Procuraram até encontrar a menina que estava desaparecida. Morta, aos seis. Foi num matagal, na periferia da cidade, entre latas, garrafas, cacarecos e muito lixo reciclável. Só a humanidade não muda. Farra para larvas e mosquitos. Ninguém segura a dengue. Ninguém segura a iniquidade humana. Nada me resgata do desencanto.

Na cena do crime, teve policial chorando, ao pensar nos próprios filhos, ao assumir a dor do outro. Por mim, por causa da nítida falta de bravura, o soldado ganharia um abraço e uma medalha de humanismo. Quantas vezes já me senti mal assim. Fraqueza de quem deveria segurar a onda, manter as estribeiras, aguentar a pressão. Homens com corações de pedra. Precisamos, quem sabe, antes de tudo, de mais homens com corações de pedra, um exército deles, quiçá, marchando de peito aberto, de queixo erguido, celeremente, para melhor enfrentar os infortúnios de estarmos vivos.

Não importam as crises existenciais, institucionais ou econômicas. Aconteça o que acontecer, não importa o cenário, haverá, sim — palhaços! — carnaval de rua no país. “A folia está garantida; os pontos facultativos, idem”, declararam os prefeitos, empolados, do jeito que o povo gosta. Driblaram os tribunais de conta dos municípios, os mandados de segurança, a insegurança de fazer a coisa errada na hora certa. As águas vão rolar. Os olhos que o digam. Cada um gasta as próprias lágrimas do jeito que consegue. Eu, por exemplo, quase nunca choro. Vivo represado, aturdido, com aquela sensação de vazio, um zé-mané, enfim. Detenho, à revelia, a pecha de homem sério, sistemático, equilibrado, frio e, até mesmo, insensível. Insensível. Já ouvi tanto esse adjetivo, muitas vezes dito com raiva. Não me orgulho disso, podem crer.

Num flash ao vivo pela TV, notícia quente de última hora, uma repórter de olhos frios informa que a polícia identificou, cercou e matou o suposto assassino da garotinha. Logo em seguida, entra a moça do tempo, uma mulher simpática de pernas esguias, tendo uma delas a mensagem “RUN TO ME” tatuada na panturrilha, avisa que o tempo estará ótimo, propício para receber os foliões nas ruas, na maior parte do país. Enquanto isso, eu afundo pesado na poltrona, tentando digerir as informações, controlar as emoções, compreender a dinâmica dos fatos nesses tempos de tamanho avanço tecnológico e retrocesso vivencial.

Velocidade da comunicação. Há excessiva velocidade da comunicação na era digital. A informação está globalizada. Os podres da humanidade são servidos à mesa todo santo dia. Basta sintonizar o rádio, ligar a TV, deslizar o fura-bolo na telinha do smartphone ou tomar cafezinho na lanchonete da esquina, tanto faz. Já vai estar todo mundo sabendo, qualquer assunto, de preferência, uma tragédia. A maioria das pessoas se amarra em morbidez. A balconista bonita me serve uma média com pão francês. “You are so beautiful”, sussurro, faço uma média com ela, gastando os parcos recursos em inglês. Ela sorri, sem nada entender. Sabe, contudo, que foi um elogio. Deveríamos estar num café em Paris, por que não? Nem assim estaríamos a salvo de nós mesmos. Atentados acontecem a cada instante, vocês sabem. Já faz muito tempo que os franceses são odiados, fazer o quê? A pobre balconista não concluiu o Ensino Fundamental, coitada. “Fundamental é mesmo o amor. É impossível ser feliz sozinho”, cantarolei. Bingo! Ganhei um biscoitinho e um sorriso maroto como brinde da casa.

Não entendo o meu país, quem dirá, o resto do planeta. Em breve, durante quatro dias, as ruas de várias cidades brasileiras estarão abarrotadas de gente, homens que se vestem de mulher, mulheres que se despem para os homens, muita energia no ar e aquele fedor de urina evaporando da sarjeta. Porra! Tem até gente transando em pé, atrás do trio elétrico, aquele atrás do qual só não vai quem já morreu. Será que eu já morri? Uma alma padecendo de déjà-vu? Não. Já não creio mais em almas. Sou um típico caso perdido. O fato é que estou rejeitando multidões, me isolando, me transformando num espécie de cidadão antissocial. Alguém desesperançado, sei que vocês me entendem. Não me entendem? Eu devia estar contente? Não os recrimino. Não sou o Raul. Aliás, desde menino que eu não me entendo. Nem a mim. Nem a mais ninguém. Nem aquela alegria toda estampada no rosto da multidão etílica. Será que o meu coração já virou pedra?