Afinal de contas, o ser humano está melhorando ou piorando?

Afinal de contas, o ser humano está melhorando ou piorando?

— Não é a primeira vez que me trazes um buquê com as rosas negras de Halfeti.

— Há que se bajular o diabo, se se deseja com ele palestrar.

— Para que tanta cerimônia? Falo o tempo inteiro pelas bocas dos teus irmãos, pelas mãos dos teus iguais, por suposto. “Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça”. Suponho que tu já tenhas escutado tal adágio, estou certo?

Rimos. E nossas risadas ecoaram pelo beco escuro, incomodando ratos, sombras e baratas que escapuliram pelas gretas, frestas e laringes de homens desacordados que jaziam na sarjeta. Era alta madrugada; e eu, num baixo astral danado, aturdido com as últimas más notícias do planeta, defendendo o leitinho-com-rum das crianças. Pra falar comigo, o capeta tomara emprestado o corpo modorrento de um bebum que morava num caixote-de-ripa, dentro do qual viera embalada a geladeira extra-big adquirida pelo Restaurante do Velho Joe na Macy’s. Grande bosta.

Ali estávamos: eu, numa missão jornalística, mesmo não sendo um jornalista, um diplomado daqueles que não sabem redigir uma redação melhor do que um pirralho do Ensino Médio, detentor de profundas dificuldades gramaticais e coisa e tal; e o próprio demônio, em pessoa, ou melhor, possuindo o corpo de uma pessoa, um ébrio, um morador de rua que jamais tivera a oportunidade de ler Fernando Pessoa, um indivíduo com quem eu já tinha sorvido algumas botijas de Aguenta-o-Rojão, um dos melhores uísques falsificados que o Velho Joe concebera no subsolo, a partir de água-que-passarinho-não-bebe mais solução-de-bateria que ele drenava de carros em ferros-velhos da periferia. Nada de novo no front, certo?

Errado é quando eu digo verdades. Quase ninguém gosta. Saem de perto. Evitam-me. De certa forma, o meu confesso charlatanismo agradava a satanás, que prontamente aceitara conceder mais uma entrevista para a Revista Bula (por que nunca me enviam para uma conversa reservada com a Scarlett Johansson num bangalô na Polinésia Francesa?!), o periódico predileto dos leitores que se amarravam em literatura com efeitos colaterais. Tem gente que é viciada em bulas; outros, em rimas; outros mais, em atazanar a vida alheia. Vai entender cabeça de gente. Cada um no seu quadrado. Deveriam estar todos enjaulados, isso sim, à exceção dos fissurados em Pablo Neruda. Por que me arriscar num convescote com o Príncipe das Trevas? “Para tentar compreender aonde é que essa joça toda vai dar”, justificou o meu editor, prestes a perder a fé.

— O mundo melhora, piora ou continua o mesmo de sempre, desde que o senhor perdeu o comando do universo para Deus numa prova de palitinhos durante a Grande Explosão?

— Fui trapaceado. Era eu a mandar no mundo. Mas, isso pouco importa.

Na prática, estou mais presente no coração e na mente das pessoas do que o meu pai. Vê, por exemplo, a decapitação de detentos nos presídios do Brasil, a violação de mulheres pelos soldados nos acampamentos de refugiados na Europa, a colheita de cadáveres infantis nas praias da Turquia, a chuva de bombas sobre alvos civis na Síria, a pesca de imigrantes negros mortos no Mar Mediterrâneo, a clitoridectomia com navalha de menininhas na África, os estupros coletivos de colegiais na Índia, a construção de um muro xenofóbico na fronteira dos Estados Unidos com o México, a criação em cativeiro de meninos-monstros pelo Estado Islâmico, o massacre de notívagos desavisados no Bataclan em Paris, a corrupção institucional brasileira corroendo o presente e o futuro da nação. Queres mais?

— Quer dizer o senhor que o mal vigora, viceja e vence no final?

— Tu o dizes. Mas, o jogo ainda não terminou. Sob o meu ponto de vista, ao piorar, o mundo melhora sobremaneira; sob o ponto de vista divino, não posso afirmar o mesmo. Suponho que o Criador tenha se arrependido por ter iniciado essa coisa toda. A tal luta do bem contra o mal tem horas que me cansa, sabias?

— Pois é. Por que Deus simplesmente não estala os dedos e…. Shazam!!!!??? Game over! Poderia fazer um recall da humanidade e começar tudo outra vez, só que de um jeitinho diferente.

— A ordenação de meteoros rumo à grande faxina. Por que não? Isso é um mistério inquietante até mesmo para um cão das trevas como eu.

— Quais os planos de lúcifer para o ano?

— Infernizar existências. Posso contar contigo, irmão?

— O senhor não existe. É só mais uma invenção do homem para preencher o vazio da ignorância.

— Não estás, agora mesmo, a conversar comigo, parceiro?

— Eu sou apenas um escritor. E essa é mais uma história, dentre tantas já contadas.

— Se eu quiser, te destruo tão rápido quanto cuspo.

— Se eu quiser, termino o texto agora e Fim.

— Tu jogas bem, magrelo. Pareces um deus.

— No momento, até me sinto como tal. Tenho a caneta na mão. Posso criar. Posso destruir. Ou fazer nem uma coisa, nem outra coisa, para deixar todo o mundo numa dúvida infernal pelo resto dos capítulos.

— Adeus, meu chapa. Recomendações ao teu editor.

Senti um forte cheiro de enxofre exalando do bueiro. Quase amanhecia. Meu bêbado recobrou os sentidos. Entramos cambaleando no Restaurante do Velho Joe para mais uma rodada do delicioso, porém, falso Aguenta-o-Rojão. Tudo para amortecer o retorno, a queda à vida real.