Lamento informar que, por motivo de morte em família, não poderei comparecer ao próximo rendez-vous

Lamento informar que, por motivo de morte em família, não poderei comparecer ao próximo rendez-vous

Compareci a mais um velório em Shangri-la. Se Deus existe mesmo, sabe o quanto odeio tudo isso. Sabe aquela fase em que o povo desanda a morrer? Pois, então, tá desse tipo, companheiros. Pior de tudo é que me elegeram como uma espécie de porta voz oficial da mortandade e da desgraceira no seio familiar. Divórcio, morte, atropelamento… É comigo mesmo. Será por causa dessa minha cara de segunda-feira?

Sei lá. Fulano mal termina de bater as botas, alguém telefona me intimando pra comunicar a todos a novidade. Levo jeitinho pra dar notícia ruim? Discordo. Eu gosto mesmo é de anunciar que a gatinha angorá pariu sete gatinhos e meio. Ou que voltou a chover coágulos de sangue na aorta. Ou que o resultado da biópsia do apóstata foi “Negativo”. É pra coisas assim que eu sirvo. É disso que eu estou falando, cambada. Esqueçam o meu rebolado sereno. Será que passaram fel na minha boca e não percebi? Ora, absolutamente ninguém mais me convida para um rendez-vous antes da lua-de-mel.

Cheguei devagar. Comecei a divagar. Fiz curvas na conversa. Medi as palavras. Receava que meu pai tivesse um treco. Não se brinca com as emoções de um velho, vocês sabem. Coração cansado é pá-buff. Fiquei besta com a reação dele. Aliás, a cada dia admiro mais o velhote, não tardo a confessar. Permaneceu tão calmo como um pangaré dormitando na sombra.

“ — Será que o velório demora, meu filho? Tenho coisas importantes a fazer inda hoje: aguar as plantas, por comida pro Duque (Duque é um cão que não chupa mangas), tomar meus remédios, dar passes logo mais à noite.”

Não. Meu pai não pratica dança de salão, muito menos joga pelada no auge dos 77 anos. Não tem mais idade pra isso. Faz tempo, o sujeito frequenta um centro espírita e é crente até os ossos, ou melhor, até a alma.

“ — Que pressa é essa, pai? O morto é seu irmão.”

“ — Maninho viveu 90 anos. Nosso pai morreu aos 40. Portanto, tá bom demais da conta. Descansou. Foi lucro pra ele, pode crer. Tá muito melhor que a gente. E aí? São quantos quilômetros até Shangri-la?.”

Cemitério acanhado. Ambiente lotado. Uma mulher estupenda passa chorando dentro de um vestidinho colado. Uau! Não era o momento de pensar vulgaridades. Perdão, tio. De novo, aquele velho instinto animal de perpetuar a espécie. Enquanto isso, mais um homem morria. Uma densa catinga de flores deixava ainda mais irrespirável (não para o falecido) a atmosfera da sala de velórios número 3.

Calor infernal. Cafezinho frio. E o meu coração gelado anotando tudo. Escritores são cruéis pra burro. Quase acertei um antigo desafeto com um murro. Sim, sou um lamentável poço de mágoas. Mulheres sem anáguas, histéricas, posso lhes assegurar, debruçavam-se sobre o caixão, debulhando lágrimas, encharcando o terno do vozinho. Moscas zuniam, riam da gente. Um bobinho de sessenta e tantos anos enchia o saco de todo mundo fazendo comentários sem pé nem cabeça. Ô, raiva. Um pandemônio, enfim.

“ — Vamos fechar logo a tampa desse ataúde, pelo-amor-de-deus”, alguém sugeriu, esbanjando sensatez. Era mais um daqueles parentes distantes cujo nome eu desconheço. Suponho que vocês também os tenham.

Quando o corpo finalmente desceu à laje fria (adoro esse tipo de frase) e os pedreiros colocaram a mão na massa para levantar uma pequena parede de tijolos, num átimo, estranhamente, eu me lembrei do arrogante Presidente Donald Trump, que reiterara durante o seu discurso de posse a firme intenção de construir um muro na fronteira dos Estados Unidos com o México. Vai ser besta lá em Miami! Um pastor disléxico disparou a falar à beira da sepultura, exaltando os benefícios do morto para o resto da humanidade. Ora, que conversa fiada era aquela. Todo mundo ali sabia que o velhote não lá uma unanimidade. Começou a chuviscar. Aumentou a umidade. O bobinho falante aproximava-se perigosamente da gente. Foi a senha para cairmos fora.

“ — V’ambora, pai?”

“ — Demorou”, disse o velho.

Vazamos na capoeira feito dois anus sem coração.