O Ministério da Saúde adverte: para viver bem é só ligar o foda-se!

O Ministério da Saúde adverte: para viver bem é só ligar o foda-se!

Já quis chutar o balde, o saco, macumba, pedra, barata, latinha, castelo de areia, gente chata. E chutei. Já quis sambar na avenida, no bloco de rua, na gafieira, agarradinha, sozinha, na cara da sociedade. E sambei. Já liguei bêbada no meio da madrugada para dizer “eu te amo”, cedinho para dar “bom dia” e mais tarde para falar “me esquece”. Liguei para a minha melhor amiga na época em que as pessoas usavam o telefone para fazer chamada. Falamos sobre nada com coisa nenhuma e nunca fui tão compreendida! Liguei o som nas alturas, o chuveiro bem quente, os pontos cruz, o fio vermelho no verde. Liguei a TV só por ligar, o rádio para não me deprimir com a solidão, o ferro de passar roupa e me esqueci de desligar. Liguei o abajur e deixei aceso até de manhã. Liguei o foda-se também. Várias vezes.

Já bati a porta do carro, a porta de casa, o telefone na cara. Já bati de carro, de encontro, bati o bolo na mão e um papo agradável. Já bati boca, bati o santo, bati o olho e foi amor à primeira vista. Já surtei de ciúme, de raiva, de TPM. Já menstruei em pé no ônibus cheio, na calcinha branca, na sala de aula, na balada, na praia, na hora H. Já menstruei antecipadamente, no Réveillon, no carnaval, aniversário, feriado prolongado e depois de alguns dias de atraso — ufa! Menstruação quando chega atrasada dá um alívio danado!

Já queimei o arroz, o couro cabeludo, os pés na areia quente, o corpo até dar bolhas. Já queimei foto do ex, o meu próprio filme, e a cabeça de tanto pensar. Queimei de ódio e de vergonha. Ah, queimei. Já saí sem hora para voltar, sem juízo, sem sutiã, sem perfume, celular, chave de casa, protetor solar. Já menti para a minha mãe quando disse que nunca fui a um baile funk, para o meu pai quando jurei que nunca tinha beijado, para o meu chefe quando supostamente adoeci na quarta-feira de cinzas. Menti na primeira e na última vez. E continuo mentindo.

Já me senti feia, esquisita, desinteressante. Já me incomodei com meus peitos pequenos, mas já tive muito peito para enfrentar homem folgado, injustiça e abuso de poder. Teve quem fizesse eu me sentir pequena, mas teve também gente que fez me sentir gigante. Já tive vergonha por ser magra demais, por ter espinhas, dentes tortos e um cabelo indomável. Vergonha de dizer sim, de dizer não, de expor o que eu penso e como me sinto. Algumas vergonhas eu perdi, mas outras eu faço questão de manter, como, por exemplo, a vergonha na cara.

Já senti a dor da depilação íntima com cera quente, a dor do parto normal, da pedra nos rins, dor de dente, enxaqueca e ligamento rompido. Mas nenhuma dor se compara ao adeus de quem partiu para o novo mundo. Já fui jovem demais para morar sozinha, tomar um porre e viajar com o namorado. Já fui jovem demais para arcar com tantas responsabilidades e tomar decisões importantes. Hoje sou velha para assumir um cargo que compete a uma garota com dez anos menos que eu. Sou velha para ser imatura, ciumenta, insegura, para ainda não saber o que eu quero para a minha vida depois de ter vivido mais de três décadas.

Já fui mocinha e já fui bandida, fui muito boa sem a menor pretensão e bem má com a pior das intenções. Já fui professora, advogada, médica, arquiteta, psicóloga, poeta, astróloga, cantora e atriz. Já fui feminista, marxista, vanguardista, abolicionista, exibicionista. De todas as rimas me sobrou ser colunista. Já fui hippie e já fui punk, bossa nova e rock and roll. Já fui moderninha, patricinha, romântica, antiquada, revoltada e descolada.

Nem uma coisa, nem outra. Nem P nem G, nem branca, nem índia, negra ou parda. Ser mulher é ser tudo ao mesmo tempo. É ser bicho, fêmea, dama e meretriz. É coisa espiritual, antes mesmo de ser de nascença. Depois que nasce, a mulher vai driblando a vida no peito e na raça. Chutando, sambando, sangrando, vivendo as suas mil faces, em mil fases, de mil luas, dentro de mil vidas. E ligando o foda-se de vez em quando, porque ninguém é de ferro.