Jack London, o mito permanente

Jack London, o mito permanente

Um dos mais vigorosos autores norte-americanos, Jack London, não teve até agora uma biografia à altura de sua vida, movimentada o bastante para preencher um livro onde se mesclariam aventura, drama, política, romance e tragédia. Fora alguns fracos relatos biográficos aqui e ali (incluso um escrito pela filha de Jack, Joan London, em 1938), dois autores intentaram descrever sua vida: Irving Stone, em 1938, e mais recentemente, Alex Kershaw, em 2000. O livro de Stone foi traduzido e lançado, há anos, no Brasil, com o título: “A Vida Errante de Jack London”. Deixa muito a desejar, levando em conta que o autor fez trabalhos melhores, incluindo uma biografia de Van Gogh, e uma de Michelangelo, levada ao cinema no filme “Agonia e Êxtase”, com Charlton Heston.

Talvez os métodos de pesquisa, relativamente pobres na década de 1930, tenham limitado o trabalho de Stone. Kershaw teve mais sucesso, embora não se possa dizer que seja uma biografia definitiva. Com mais fontes ao seu alcance, encontrando dados organizados em bibliotecas, universidades e fundações mais recentes, ele conseguiu construir um livro mais profundo, aprimorado e ilustrado. Pena que ainda não haja tradução em português. Mas quem quiser conhecê-lo, pode conseguir a versão espanhola, “Jack London — Un Soñador Americano”, da Editora La Liebre de Marzo, de Barcelona. A internet põe qualquer livraria do mundo ali na esquina.

London escreveu o que viveu, e seus livros têm três cenários distintos: o mais apreciado é, sem dúvida, o da corrida do ouro no Alaska, vindo depois o das ilhas até hoje deslumbrantes do Pacífico Sul e finalmente o espaço político socialista (e comunista) norte-americano do fim do século 19 e início do século 20. Nesses três cenários, Jack London gastou intensamente sua breve existência, viveu as emoções mais profundas, correu os riscos mais mortais, travou as mais duras batalhas. De fato, tinha o que relatar. Cumpriu o que prometia: “Mais vale uma existência curta, mas brilhante. Não passarei meus dias tentando prolongá-los; prefiro ser cinzas a ser pó”. Morreu aos 40 anos. Uma emenda: além dos relatos nesses três espaços que mencionei, Jack London também deixou uma produção curta, mas de qualidade, no que poderíamos classificar como ficção científica. E uma novela autobiográfica, “John Barleycorn, ou Memórias Alcoólicas”, na qual narra sua briga com o alcoolismo.

Não podia, como todo homem inteligente, deixar de se perguntar: de onde viemos, para onde vamos? London buscou respostas em algumas fontes conhecidas: Spencer, Darwin, Marx e Nietzsche. Teve como livro de cabeceira, durante anos, “Os Primeiros Princípios”, de Herbert Spencer. Encantou-se com Charles Darwin depois das aventuras no vale gelado do Yukon, onde a sobrevivência era privilégio dos mais fortes. Achou que Karl Marx tinha as respostas quando a sensibilidade que ele escondia atrás de sua fortaleza indagava sobre as injustiças sociais. Foi um militante comunista. Mas en­­­cantava-se com a ideia de que havia seres superiores, mais fortes e mais aptos — condutores — destinados a apontar caminhos para as massas, como interpretava nas leituras de Friedrich Nietzsche (1844 — 1900), justamente o filósofo que inspiraria Hitler, meio século depois, a tentar esmagar o comunismo. No último ano de vida, ainda buscou respostas em outro psicólogo e psiquiatra: Carl Jung.

Jack London teve uma infância pobre e difícil, em companhia da mãe, Flora Wellman Griffith, abandonada pelo primeiro marido, e pai de Jack, que nunca o reconheceu, William Chaney, quando o garoto tinha apenas alguns meses. Aos quatorze anos, logrou terminar a escola secundária, mas a penúria não só o fez interromper os estudos, como o obrigou a um trabalho duro, de 12 horas diárias ininterruptas e miseravelmente pagas, em uma fábrica em São Francisco, onde havia nascido. Vivia então em Oakland, do outro lado da baía de São Francisco. Autodidata desde essa idade, nas horas vagas frequentava a biblioteca de Oakland. E foi então que, para fugir às agruras da vida, começou com a bebida, vício que não deixaria — embora o negasse — até a morte prematura. Outra consequência desses tempos duros foi fazê-lo abraçar, mais tarde, o comunismo, que nada mais era, à época, do que uma teoria promissora de igualdade e abastança, e só mais tarde viria, na prática, a mostrar a sua crua face de utopia esmagadora. London, buscando uma independência — já falava em ser escritor — passou por uma fase em que pilhava ostras nos criatórios da baía de São Francisco, em camaradagem com outros jovens piratas. Depois mudou de lado, e empregou-se na guarda costeira, que perseguia os piratas.

Aos 17 anos, engajou-se num navio que se dirigia, na caça às focas, ao gelado Mar de Bering. Quase um ano no mar e ele desembarcou de volta na baía de São Francisco com algum dinheiro — pouco — no bolso, mas muitos livros lidos a bordo, muitas aventuras vividas e muitas ideias na cabeça para novelas e contos futuros. Foi dessa experiência que tirou mais tarde um dos livros de maior sucesso de sua carreira (e da literatura americana): “O Lobo do Mar”. O pontapé inicial de sua vida de escritor foi dado nessa volta: London ganhou um concurso para autores jovens que um jornal de São Francisco havia aberto, com o conto “Tufão nas Costas do Japão”. Não havia feito nada mais que contar, com seu talento nascente, uma experiência que o havia marcado para sempre, e que não se cansaria de mencionar em suas conversas: o quase naufrágio do navio caça-focas em que estava, quando enfrentou um furacão na costa japonesa. Passou dois anos acompanhando pelos EUA desempregados pela depressão de 1890 e frequentando reuniões promovidas pelo Partido Comunista Americano, uma criação de imigrantes alemães da década de 1840, a que Jack aderiu com entusiasmo juvenil, mesmo porque já era leitor de Marx.

Foi aos vinte anos, em 1896, que fez sua última tentativa de concluir um ensino formal. Estudando só, e com muito esforço, desempregado, conseguiu ser aprovado na admissão ao curso de letras da Universidade de Berkeley. Não ficou um ano. Tinha que trabalhar, cuidar da mãe. E era muito inquieto para o formalismo dos bancos de escola. Convencido de que havia de ser escritor, começou a enviar trabalhos para revistas americanas, sem sucesso. Foi obrigado a aceitar alguns empregos menores para sobreviver, até que ouviu falar de Klondike, no noroeste do Canadá, onde o ouro era abundante e a fortuna era fácil. Conseguiu um empréstimo com a irmã de criação (Flora, sua mãe, havia se casado pela segunda vez, com um viúvo, John London, que tinha um casal de filhos, e de quem Jack adotaria o sobrenome) e, junto com o marido dela, partiu para o Alaska. Jack tinha 21 anos. Viajaram num navio onde se empilhavam centenas de aventureiros ansiosos pela colheita de ouro. Pouquíssimos conseguiriam algum sucesso, e muitos encontrariam a morte pela estafa, pelo congelamento, pela fome, pelas disputas entre eles mesmos ou com os nativos ferozes. Depois de um ano e muitas dificuldades, incluindo um grave ataque de escorbuto, Jack estava de volta a São Francisco. Sem uma grama de ouro sequer, mas com uma fortuna intangível em sua memória: lembranças para mais contos e novelas do que ele chamou de o silêncio branco e dos homens e animais que o desafiaram. Jack agora só queria escrever.

Leitor de Herman Melville, Robert Louis Stevenson, Zola, Flaubert e Turguêniev, sonhava com o sucesso deles. Acima de tudo, invejava Rudyard Kipling, então o escritor mais famoso do mundo. Chegou a copiar, à mão, as obras de Kipling, pensando assim absorver seu estilo. Logo London, dizendo-se comunista e admirando o mais colonialista dos autores. Durante quase um ano, a máquina de escrever de Jack trabalhou muito, mas os resultados não vinham. Jornais e revistas publicaram alguma coisa, sem grande repercussão. Por sobrevivência, London chegou a ocupar um posto inexpressivo nos correios, até, que em 1899, a maior revista da costa oeste americana, “Overland Monthly”, publicou seu conto — que até hoje faz parte das grandes antologias do conto mundial — “O Silêncio Branco”. O sucesso foi imediato, e lhe abriu as portas de outras publicações, inclusive da então maior revista americana, a “Atlantic Monthly”, que fechou com ele um contrato para mais algumas estórias. Com a fama crescente vieram os contratos com as editoras, revistas e jornais, mas nunca a fortuna. London gastava sempre mais que ganhava e vivia atolado em dívidas. Alguns anos depois, num artigo na revista “The Editor”, daria conselhos aos pretensos escritores, e usaria uma frase que seria repetida e tornada famosa por Churchill décadas depois, ao começo da Segunda Guerra: “Não deixe seu trabalho para escrever, a não ser que ninguém dependa de você. De todas as classes de obras, a ficção paga melhor e quando tem qualidade, se vende mais fácil. Uma boa piada vende melhor que um bom poema e, visto que você verteu sangue, suor e lagrimas, estará mais bem remunerado…”.

Entre 1902 e 1915 foram publicados seus livros de maior sucesso, alguns ainda sobre o Yukon: “A Filha das Neves”, “O Chamado Selvagem” e “Caninos Brancos”, outros sobre a vida no mar: “O Lobo do Mar” e “O Motim do Elsinore”, os politicamente engajados: “O Tacão de Ferro” e “Martin Eden”, e os science-fiction: “Antes de Adão”, “A Praga Escarlate” e “O Vagabundo das Estrelas”. O livro “A Estrada”, de Cormac McCarthy, tem muito de “A Praga Escarlate”. Houvesse o que houvesse, Jack escrevia mil palavras por dia. Só assim pôde produzir tanto em poucos anos de trabalho (e de existência). Mas uma vida de bebedeiras, drogas (sim, já existiam) e péssima alimentação cobrou a conta. Ele não estava disposto a pagar. Sua saúde deteriorava-se rapidamente. O antigo boxeur tornara-se frágil. Matou-se, ingerindo morfina, em 1916, aos 40 anos. Alex Kershaw, inexplicavelmente, esconde ou lança dúvidas sobre esse ato. Inútil. É sabido que London até calculou a dose fatal antes de tomá-la.

Bonitão, atlético, bem falante, e, ao final, famoso, foi homem de muitas mulheres. Nunca amou, na verdade, sua primeira mulher, Elizabeth (Bess) Madern, que lhe deu duas filhas, e que guardou ressentimentos até a morte por ter sido abandonada e trocada por sua melhor amiga, Charmian Kittredge, ela, sim, o grande e permanente amor, correspondido, de Jack London, que teve ainda, ao lado de muitas aventuras ocasionais, um amor platônico: a bela judia Anna Strunsky, que acabou se casando com outro, para grande desgosto de Jack, mas que manteve correspondência com ele, por quem tinha grande admiração e amizade, até sua morte.

London é muito lido, até hoje, e não só nos países de língua inglesa. E já lá vai um século desde que morreu. Por que é tão lido? Jack London, como todo grande escritor, consegue dar algumas sacudidas em nossa alma. Aprofunda algumas de nossas perguntas mais renitentes e até consegue responder a outras. O faz, às vezes, num simples conto, e London foi, como Tchekhov, acima de tudo um grande contista. Sugiro ao leitor dois contos seus, reveladores da sabedoria da vida: “O Combate” e “As Tartarugas do Tasman”.

Seus romances políticos, ainda que de um vigor incomum, não são o melhor de sua produção. Não foi Marx seu maior inspirador. O que conta mesmo, em sua obra, e é conhecido por isso, é sua descrição do que se convencionava chamar “struggle for life”. A luta que todos enfrentamos, em alguma ocasião, por nossa existência. O instante fatal, a que poucos conseguem emprestar o valor e o brilho — mencionado pelo Kipling admirado por London. E, embora com o coração tocado pela solidariedade, pela fraternidade e pela brandura, Jack London relatou o que viveu, e viveu a dura disputa pela sobrevivência, o homem contra outros homens, contra animais e contra a natureza, ora perdendo, ora vencendo.

Lutador pela igualdade entre os homens, sempre exaltou os mais fortes, e nunca deixou de enunciar a lei da natureza que contempla os mais aptos. Acreditou mesmo nessa igualdade inexistente? Defensor do internacionalismo, viu no Britânico qualidades superiores, de desbravador e civilizador, a ponto de sempre falar no “fardo do homem branco”, do poema de Kipling, cujos primeiros versos são mais que sugestivos: “Toma o fardo do homem branco/ Desterra o melhor de tua prole/ Obriga teus filhos ao exílio/ A servir as necessidades dos conquistados/ A esperar com pesadas cadeias/ Sobre um povo abatido e selvagem/ As recém aprisionadas desconsoladas pessoas/ Meio demônios e meio crianças”. O fato é que a lei da vida está presente em seus escritos mais atraentes, mais vigorosos e até mais verazes. Foi ela, com sua dureza, e não outra lei qualquer, por mais ideal e encantadora que fosse, que ele encontrou pela existência afora, como não poderia deixar de ser. Uma lição de sua obra é a de que podemos sonhar com outros mundos, mas a natureza inexorável nos traz de volta a este onde vivemos, tão logo abramos os olhos. Onde a brandura é mais rara que o ouro. A natureza não derrama lagrimas.