‘Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu’

‘Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu’

Olhar através do buraco da fechadura parece um tanto excitante. Há em nós um espectador “voyeur”, passeando pelas inúmeras janelas indiscretas da internet e das relações cotidianas. Vídeos vazados, nudes, batida de carro, briga de vizinho — dramaturgia sedutora e instigante estimulando a mirada. Para alguns, não há diversão maior do que a novela da vida alheia. É inegável: observar o outro secretamente é tão provocante quanto acompanhar a dança que o olhar da câmera do Hitchcock executa.

Por outro lado, para ser espectador é preciso que alguém esteja disposto a se exibir. Num mundo onde a exposição é generalizada, há mais exibicionistas narcisos do que olhos para dar conta da demanda. Com a perda da privacidade, parece irônico pensar que seria mais obsceno mostrar o rosto do que o sexo, do que o corpo. Nelson Rodrigues corrobora essa reflexão: “Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu”. Esconder o rosto é a única forma que nos resta de manter a individualidade.

O certo é que pessoas precisam de pessoas. Construímos significados e sentidos que nos atravessam por inúmeros espelhamentos. Em alguma medida, regulamos nossas câmeras internas a partir do olhar que está do lado de fora. Aprender com alguém é magnífico, mas é terrível preferir viver o prazer do outro a encontrar o próprio. É que o “voyeur” fascinado, desmedido, torna-se cego. Interessa-se obsessivamente pelo prazer da vida alheia, enquanto sente um desinteresse profundo em relação à própria vida.

O olhar está fora. Olhamos porque nos falta, porque ver nos ajuda a acender o olhar por dentro. Olhamos para nos inspirarmos. Para comparar, para melhorar. Olhamos porque nos excita contemplar o que o outro possui — pernas, bunda, inteligência, humor, idiotice, beleza, cultura, conta bancária —, cada um exibe o que tem. Cada lente captura o que se encaixa no seu prazer. Os masoquistas insistem em olhar desgraças só pelo prazer de se sentirem mal. Tem espectador para tudo! Nesse jogo de cena, é possível ver apenas por um ponto, enquanto somos observados por vários. Sorria, você está sendo filmado! Aliás, qual é o seu melhor lado?

É natural do humano o desejo de ver, embora seja mais intenso o desejo de ser visto. Não há nada mais libidinoso do que ser atravessada por um olhar. Como num romance, Lily Braun, a personagem criada para compor o “Grande Circo Místico”, foi capturada pelas lentes objetivas de um “voyeur”. Ela descreve: “Os seus olhos me chuparam feito um zoom. Ele me comia, com aqueles olhos de comer fotografia”.

Confessa! Para esse olhar pornograficamente poético, quem não diria “cheese”?