Quem for feliz levanta o dedo

Quem for feliz levanta o dedo

Anda. Desce já daí. Tu deverias sentir vergonha de dizer que não és feliz. Teu carro é do ano. Tua mulher é linda, mesmo passados tantos anos. Teus filhos gozam de uma saúde de ferro, embora lhes faltem alguns dentes. Aliás, tu deverias ir urgente a um dentista, pra ele anestesiar a dor que tu sentes pelo mundo. Cuida da tua própria dor, amigo. Esquece o mundo. Afrouxa a gravata, as horas, a corda. Acorda, criatura. Tu deverias sentir vergonha de dizer que não és feliz. Tua casa já foi quitada. Os duendes do teu jardim não param mais de rir, faça sol ou faça chuva. Olhando aqui debaixo, agora te pareces demais com eles, sabias? Deve ser por causa do semblante espasmódico, do cenho estático. Tu deverias sentir vergonha de dizer que não és feliz. És bilíngue, conheces Paris, tivestes a sorte de beijar Catherine Deneuve, a garçonete com nome de atriz. Para de procurar, irmão. Não há nada de novo no mundo: ele continua, continuará, ele sempre foi bom ou ruim, apesar, a despeito de ti ou de mim. Anda. Desce já daí. Vai coar um café com os grãos que tu trouxeste de Bogotá. Vou te contar, a Colômbia tem o melhor café do mundo, é tudo verdade. Por que mentiste pra mim, camarada? Tu não foste para o campo pescar. Agora, apareces aí, de repente, fisgado pelo ventilador do teto. Nada. Não sabemos nada. Não acho correto que se minta para um amigo. Tu deverias sentir vergonha de mentir para mim, de dizer que irias pescar e que não eras tão feliz quanto eu imaginava. Tens um emprego estável que paga salários em dia. O teu checape estava melhor do que o meu, foi o cardiologista quem disse. Um violoncelista pratica o instrumento na casa ao lado. É um solo adequado para o momento: o teu corpo sem movimento já não dança entre as notas musicais. Você já não é. Você está. Você está assim como está toda a mobília da sala. Tu deverias sentir vergonha de dizer que não és feliz. Tu não saberás da novidade do dia: Bob Dylan levou o Nobel de Literatura (um doce escândalo) e está saindo com uma nova turnê pela América, apesar de possuir quase mil anos. Sim, eu também acho que os ídolos nunca envelhecem. A cidade está com a grama verde. Voltou a chover. Fizestes lama, meu caro. Anoitece na casa onde teus olhos já não brilham mais, são estrelas que perderam o fôlego e a convicção de serem estrelas. Brilhar por brilhar: quem vai querer tanta luz? Tu escreves bem pra cacete. Há um livro teu no prelo. Há um punhado de amigos também. Há o amor que muitos gastam contigo: a tua belle de jour, os teus filhos ainda infantes. Há, antes de mais nada, um cello a tocar, insistentemente, na casa ao lado. Quisera tu o pudesses ouvir, aí do alto, a levitares feito um saco de carne e ossos, uma pálida marionete nas mãos de Deus. O sujeito anda inspirado: aquele japa tímido, miúdo e talentoso que tu vivias a comparar com o Yo-You Ma. Erramos feio, colega. Não são japas. Eles têm ascendência chinesa. Ah… como teu vizinho de olhos puxadinhos toca bem aquele velho monstrengo de cordas. Por sinal, acorda! Ouve que belos acordes invadem o perímetro da tua casa. O sujeito toca “Nocturne”, de Frédéric Chopin. Penso que seja a sua melhor performance nos últimos tempos. Acho que a música é linda. Tu dirias que é meio triste. Não perderias a oportunidade de me contrariar, de frisar que és um homem meio infeliz, se é que isso seja mensurável. O que será a felicidade, afinal, meu caro amigo? Quantos homens têm o privilégio de comer sardinhas e de tomar um bom vinho chileno ao som de Chopin tocado por um china talentoso? Anda. Desce já daí. Pula das mãos de Deus. Afrouxa a gravata e essa tua cara de drama. Me chama. Por favor, acorda de uma vez e me chama. Diz que tudo não passa de um sonho.