O épico e o lírico em “Os Miseráveis”

O épico e o lírico em “Os Miseráveis”

Atribui-se à modernidade o enterro do épico, de­finido pelo plano ge­ral e a sequência protagonizada por vários personagens, em con­fronto com a sacralização do close, a vida confinada na cidadania sem dimensões grandiosas. Esse distúrbio da percepção atinge to­dos os nichos da produção artística e intelectual, desde a poesia, distraída com o trocadilho e a busca da partícula elementar da linguagem (a ruptura levada ao infinito da fragmentação) até o cinema, envolvido com o autismo da violência, em que cada personagem é o fim em si mesmo. Não há a saída honrosa da narrativa, em que as pessoas abrem mão de seus interesses para que algo maior triunfe.

Esse enfoque virou obsessão, fazendo com que cineastas medíocres se especializem no mergulho permanente e sem volta da violência pura e simples, já que não há por o que ou quem lutar. A lei, o Estado, a nação, tudo virou pó diante da barbárie. E até mesmo o amor romântico é vítima, já que mal sobrevive aos pedaços, dividido entre ações de desespero mútuo entre casais improváveis. Na outra ponta do mesmo novelo, sobra o choroso romantismo sem um pingo de transcendência, encerrado em draminhas que não levam a nada, a não ser um final pseudo feliz.

Victor Hugo já tinha resolvido magistralmente a questão com seus romances impregnados de grandeza histórica, onde medra não apenas a luta, o debate sobre princípios, a oposição entre miséria e riqueza, injustiça e remissão, mas o amor entre representantes de facções que explodem no imaginário social em momentos decisivos. “Os Miseráveis”, que trafega entre a derrota de Waterloo em 1815 à revolução de junho de 1832, num catatau de cinco volumes de mais de 1300 páginas, foi lançado em 3 de abril de 1862 simultaneamente em 7 cidades europeias, tendo vendido só em Paris 7 mil exemplares em 24 horas. Um recorde que mostra a força do autor que ao completar 80 anos viu a população de Paris desfilar em sua porta lhe jogando flores.

O épico em “Os Miseráveis” é a tortura nos porões das prisões e das galés, a revolta da população pobre diante de um governo corrupto, a insurgência da mocidade em armas para restaurar a república que a monarquia tinha levado novamente, apesar da revolução de 1789. O épico é também o principal conflito do filme, entre o ladrão Jean Valjean (Hugh Jack­man), que tenta a remissão, e o comissário de polícia Javert (Rus­sell Crowe) que não acredita na sua recuperação. Pois, nesta história, a predestinação define a vida de cada um. Quem nasce para o crime, nele permanecerá e quem encarna a Justiça dela não se afasta.

Essa oposição entre dois protagonistas costura o musical numa história filmada pela enésima vez. O diretor Tom Hooper e os roteiristas Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil montaram uma narrativa de 158 minutos aproveitando filmes anteriores, que já tinham conseguido formatar para o cinema a obra de Hugo. Todos conhecem a história, mas o que pega no enfoque épico desta versão é a remissão e o pecado por meio do mergulho na consciência, mãe da Justiça.

O debate por meio de monólogos cantados é um duelo entre a descoberta do ladrão de que havia uma chance de se salvar, e a derrota do policial que não consegue fazer da lei a palavra final sobre a natureza humana. O conflito parece ser apenas pessoal, mas está vinculado miseravelmente à situação social. Assim como Michelet inventou a revolução francesa 40 anos depois de ela ter ocorrido, por meio de uma pesquisa e uma obra feita em plena restauração monárquica, também Victor Hugo foi buscar na revolta derrotada de junho de 1832 o ambiente de confronto entre a liberdade e opressão. Neste momento, ao contrário da Revolução vitoriosa de 1789, a mocidade armada enfrenta os canhões nas barricadas, mas a população se recolhe e todos de­vem morrer.

O que triunfa é o mito recorrente do povo que se liberta, ou por meio do sonho ou pela luta que sangra como exemplo. Lugar comum de uma literatura revolucionária, mas que no super espetáculo deste filme britânico ganha contornos emocionantes, apesar de vários equívocos. Um deles é insistir sempre no diálogo cantado quando em várias passagens caberia tranquilamente a fala normal, sem melodia, como acontece em “West Side Story”. Insistir em ser tudo feito no gogó (ok, é uma ópera) força a situação a toda hora. Outro inconveniente é a obviedade das letras, com rimas fáceis (o inglês que eu entendo não pode ser bom). E há exageros de dramalhão especialmente quando Anne Ha­thaway (que virou um fiapo neste filme, queriam matá-la?) lamenta a morte do amor quando sofre a barbárie da prostituição.

Mas o filme se impõe, apesar de tudo. Confesso que quis desistir no meio, mas foi bom seguir em frente, cruzar o umbral das várias fases da História, em que o ladrão que se redime muda de identidade sempre e se pergunta quem é ele, só encontrando pouso na morte. Não há lugar para a transformação humana neste mundo datado e definido como imutável. O paraíso, a promessa e a chance inoculadas pela fé são as saídas para o sonho que esbarra na traição, na calúnia, na brutalidade, na opressão, na tirania. Quem é a indústria do espetáculo para falar nisso? Desconfiamos do filme over, mas o que vale é o talento.

No geral implico com filmes de época, pois acredito que não se fabricam mais biotipos que encarnem de verdade séculos anteriores. Fica tudo parecendo um show de rock, inclusive com os cabelinhos e os esgoelamentos. A meninada se es­força, mas não convence. Ficamos com alguns protagonistas, como os dois principais, que tiram leite de pedra, apesar do entorno fake. Cada vez temos menos atores como Russell Crowe, com carisma suficiente para mostrar um vilão contraditório com problemas de consciência. Mas ainda há.

O forte das músicas são as canções cantadas coletivamente. A da prisão e da miséria e as revolucionárias. O resto parece feito a fórceps para caberem na história. Implicâncias minhas, mas o filme vale. Confesso que fiquei emocionado em muitos momentos e achei o trabalho todo admirável. É emocionante ver como nasce o amor entre dois rebentos, a moça Co­sette (Amanda Seyfried), filha de Fantine (Anne Hathaway), mãe solteira decaída que morreu de tuberculose lutando para sustentar sua filha, e Marius (Eddie Redmayne) o rapaz filho de família bem posta, que arrisca a vida num movimento revolucionário perdido.

O amor impossível, o que é contestado pelo ambiente hostil e depende de grandes gestos de solidariedade para que possa sobreviver (no caso, o esforço do pai adotivo de Cosette ao salvar o noivo das barricadas destruídas) faz a glória dos grandes momentos românticos da literatura e da arte. Todos sabem da impossibilidade do amor entre Romeu e Julieta, destinados a facções antagônicas e que morrem na tentativa de fazer o amor triunfar. Este, em Shakespeare, vence apenas como mito. Mas não é o caso de “Os Miseráveis”.

A esperança de dias melhores gerados pela luta suicida de uma geração que não se entrega convive com a consolidação de um amor que nasceu na guerra e promete longa vida em tempos de paz. O épico e o lírico, em vez de imitarem os amantes que sucumbem na tentativa de viver um grande amor, aqui se entrelaçam numa obra que busca a transcendência. Pode-se chamar de comercial, ou que os atores não estão á altura da ambição do roteiro e da direção, com honrosas exceções. Mas emociona ver que, mesmo abordando o passado com os olhos do presente (o que define o anacronismo), o filme se supera.

A cena em que Fantine lembra uma época antiga em que havia um amor desinteressado e genuíno, diferente do presente, quando os homens brutos forçam o sexo com corpos mortos da prostituição, é puro anacronismo. É a situação de hoje, quase dois séculos depois, em que a morte do amor é velada pelo triunfo da maldade e do egoismo. É preciso que os autores reúnam novamente o épico e o lírico para gerar obras que toquem fundo no coração das pessoas. Senão ficaremos confinados sempre às mesmas grandes obras como esta, de Victor Hugo, insuperáveis.

Em 1868, no prólogo de “Tra­balhadores do Mar”, Victor Hugo lança luzes sobre esse cruzamento entre o épico e o coração humano nas suas abordagens literárias. Antes da citação, um esclarecimento: a palavra ananke significa a personificação do destino: “A religião, a sociedade, a natureza: tais são as três lutas do homem. Estas três lutas são ao mesmo tempo as suas três necessidades; precisa crer, daí o tempo; precisa criar, daí a cidade; precisa viver, daí o arado e o navio. Mas há três guerras nestas três soluções. Sai de todas a misteriosa dificuldade da vida. O homem tem de lutar com o obstáculo sob a forma de superstição, sob a forma de preconceito e sob a forma de elemento. Tríplice ananke pesa sobre nós, o ananke dos dogmas, o ananke das leis, o ananke das coisas. Na “Notre-Dame de Paris”, o autor denunciou o primeiro; nos “Mi­seráveis”, mostrou o segundo; neste livro indica o terceiro. A estas três fatalidades que envolvem o ho­mem, junta-se a fatalidade interior, o ananke supremo, o coração humano.