Sorria. Você está sendo amado

Sorria. Você está sendo amado

Conheço um sujeito que nunca sorri. Não que eu tenha visto. Cai a tarde. Que sorte a minha. Um pássaro garboso de três cores pousa e se aninha no jardim. O outono diverte a paisagem, atapetando o caminho com folhas secas. Créc-créc-créc. É gostoso pisar sobre elas enquanto se anda. Um cão demarca território usando a própria urina. Ah… e se os humanos fossem assim? Muro ou mijo? O que mais nos separa? Eu rio. Um casal se beija na esquina à espera de amor ou de um flash. A dívida quitada abre espaço para um sorriso, mas, aquele homem cujo nome eu nem sei, simplesmente, não sorri.

Uma criança brinca, sendo criança, e é só isso. Chove mansinho. Permanece o mistério, pois, um homem que nunca ri intriga-me, apesar das inúmeras vezes em que esteve aqui no meu estabelecimento, sentando sempre à mesma mesa, tomando sempre a mesma cerveja, acompanhado sempre da mesma mulher e filhos, solicitando o cardápio para pedir sempre o mesmo prato, sempre reclamando do atendimento da casa ou do sabor da comida, ameaçando nunca mais voltar, mas, voltando sempre, jamais exibindo os dentes senão para triturar os alimentos. Rumina segredos. Durante a resenha, os garçons fazem galhofa, comentam que sorrir deve lhe doer nos testículos. E riem. E eu rio junto com eles, afinal, alguém precisa rir dessa história toda, já que o tal sujeito não sorri. Somos uns ignorantes, pois aquele homem misterioso que come e engorda mantém o cenho fechado. Eu lhe devolveria a gorjeta se ele se abrisse comigo.

O sol se exibe após a chuvinha fresca. Uma ciclista faz alongamentos. A gata rajada pare no quintal (um recorde pessoal: cinco filhotes numa só barrigada; parabéns, bichano!). Na praça, há um bebê, e ele mama com disposição ferina nas tetas da bela dama, sua mãe (muitos advertem que mirá-los não seria moral e ético). Disfarço. Dou olhadelas. Assovio. Olho para o céu: será que vai voltar a chover na minha horta? O que há de errado com aquele cliente que nunca ri, não aqui, nesse humilde estabelecimento. Será que o destino passou cimento na sua boca? Um filho morto? O pai ausente? A mãe demente? A sua própria vida por um fio?

Tempo é dinheiro. Vai dizer isso pra alguém que está com a morte a lhe lamber os calcanhares. Tempo. Dinheiro. Morte. Lambidas. Nada disso faz o menor sentido. Aquele homem que nunca ri, não dentro desse restaurante, virou uma espécie de estorvo, apesar de sempre pagar a sua conta em cash. Sua sisudez é incógnita, me agride e incomoda. Será que se mantém incólume quando assiste a comédias? Não. A julgar pela aparência e atitude, ele não tem cara de quem curte cinema. Como será que goza, quando deita e rola com sua linda esposa? Será que fecha a cara, permanece concentrado, indissociável e firme? Será que ele brocha? Eu já brochei. Uma vez. No duro. Será que ele fuma? Eu não fumo, não trago, não engulo. Será que ele se desconecta e se lava em seguida? Eu nunca me banho de manhã. Será que ele reza ao dormir? Eu só ajoelho, mas, reza, que é bom, nada. Será que, assim como eu, ele perdeu a fé? Eu, rio; ele, pedra. E todo o mistério permanece.