Como sobreviver a um pé na bunda

Como sobreviver a um pé na bunda

Para ser lido na cadência de La Valse d’Amelie (clique no player ao final da página para ouvir)

Um banco vazio. Um rio sem graça. A Lua escondida. E a lembrança que me dói tanto…

J. apareceu assim, como imagens em sonhos, um pouco fora de foco. Desconfiei dos meus olhos. Desconfiei do vazio do meu coração. J. estava lá. Em minha frente seu sorriso me perturbava. Provocava-me a sua beleza ainda não descoberta. Inflamavam-me sentimentos de dúvidas, incertezas e encantos a serem descobertos.

Logo depois da primeira mirada, procurei-a no meio da multidão. Não era capaz de reconhecer novamente seus olhos, a memória traía meus sentimentos. E a memória nunca me traíra antes. Seria ela especial? Fascinante? Fascinada? E algumas horas se passaram até reencontrá-la. Primeiro encanto. Mas ainda continuaria em dúvida.

O encanto quando aparece faz brilhar os olhos. Brilhamos juntos. Logo depois, comecei minha procura por seu sorriso. Lindo, já descoberto. O interesse crescia, a neblina dos meus olhos iam se transformando em nitidez e certa certeza imaginada aparecia. Outros se foram. O encanto se estabeleceu.

E o dia passou. Outro dia chegou. Inesperada aparição. Cantarolava uma canção. Sua voz era uma canção. Nitidez. Lembrança. Sentimentos desgelando. Dançamos em outro lugar. Meu olhar não parava de persegui-la. Perscrutava seu corpo. Invadia sua mente. Sonhava seus sonhos. Tudo velado. Inventado. Sonhando.

E o dia chegou. Meu coração disparou. Literatura. Paixão. Minha paixão. J., minha única interlocutora. O mundo parava. Meu mundo parou. Olhos só dos seus olhos. Meu sentimento encantado. Ansiedade da sua ausência. Da sua descrença. Da sua partida. J. chegou. Reluzente. Esvoaçante. Encantadora. Encantada. Fabulada. Fabulosa. Fábula. E todas minhas palavras seriam para ela. Só para ela. E assim foi. Depois de anos de perdição e desencontros, crescia. Amadurecia meu foco. O único foco. A minha única direção. Mas J. era silêncio. J. era labiríntica. J. era perversão. Procurei-a. Não encontrei nada além de rejeição. Dor. Escapei. Fugi. Resolvi esquecer. Desencantar. Voltar deliberadamente à solidão dos que estão acompanhados, mas sem amor. Aprender a desamar. Desmamar. Desacatar. Viver sem encanto.

E ela me procurou novamente. Sem muita razão. Sem muito motivo. Tentando fugir da sua solidão. Seria capaz de vencer seu Pai? Edipiana? As relações só poderiam ser incestuosas? Eu, o incesto? E ela mudou de foco. De objetivo. E reconquistou meu encanto. O encanto.

E num dia qualquer. De um tempo sem tempo. De um lugar encantado. Algo aconteceu. “Não sei”, virou “eu quero”. “Eu posso”. “Eu sinto”. Demasiadamente humana e feliz. E eu rememoro seu gosto. Seu perfume. O beijo. O Beijo. Klimt. Nossos corpos viraram um só corpo. Pintura. Cores. Beleza. Encanto. E o banco. Ainda não vazio. Ainda sem sonhos. Brilhou. Brilhamos. A Lua. O rio. Eu e J. O futuro incerto, mas mais provável. Carinhos. Carícias. Calores. O seu cheiro. O seu gosto. Suas palavras. Entranhas. Gozo. Vulcão de sensações e desejos. Aproveitei o momento. As nossas mãos enlaçadas. Espaço, silêncio e solidão desapareciam?

O dia seguinte amanheceu enfeitado. Enfeitado com meu sorriso. Com minha alegria. Eu que não sabia nada sobre escolhas, escolhia meu destino. Companheira. A paixão do corpo e da alma. E o dia prosseguiu, encantando-me. Versos. Votos de amor. Nomes belos. E um beijo roubado. O encontro repetido. Revivido. Revisitado em novos e fascinantes sabores.

Seu corpo. Meu corpo. Encontro. Encontro! O Encontro! Coitos. Carne. Pele. Gozo. Gosto do seu sexo na minha boca. A boca que mastigava palavras fascinava a vulva. Retorcia seu canto. Muito carinho. Muito do meu amor. Muito da minha paixão. Pequenas mortes. Pequenas e eternizadas mortes. Eu poderia prosseguir? Só com seu corpo e sua alma caminhando ao meu lado. Dormimos. Sustentável leveza do ser. O meu ser finalmente leve. Livre. Belo. Beleza. Leveza. Seu corpo era quente. Quente como meus sonhos. Meus pensamentos. Minha imaginação.

E o dia amanheceu sem eternizar o orgasmo. Mas eu, que nunca tinha crescido. Que fugia das relações. Que não me entregava. E idealizava a mulher amada. Escolhi. Escolhi J., com todas suas belezas e imperfeições poéticas. Cultura e vivências diferentes da minha, mas que valia a pena. A minha pena de procurar havia se extinguido? E se era tão bom, tão bom seria para ela?! Não. Definitivamente não.

J. revivia seus monstros. Fantasmas povoavam sua mente estranha. Meu sexo lembrava o sexo de outro? Meu amor lembrava o desencontro com outro? Podia ela suportar a perfeição do meu desejo? Da minha escolha? Da minha certeza? Não. Definitivamente não.

J. retrocedeu. J. se absteve. J. se desencontrou. J. recriou pecados. Pesadelos. O meu falo não a preenchia. Ela era de outro. De outros tempos. Outros momentos. Outras dores. E eu queria acessá-la. Eu queria contá-la que corpos não se encontram todo dia. Que almas só se encontram em momentos especiais. Talvez únicos. E esse tinha sido um desses momentos. Um desses únicos encontros errantes. E que minha alma seria só dela. Só para ela. E meu corpo não saberia mais dançar outras danças senão com ela. Para ela. Por ela. E isso é o que é nosso por direito. Mas a gente não sabe. Não sabe. Não sabe! Eu sei. Eu quero. Eu posso. Eu sonho.

Eu escrevo porque através das palavras tento respirar. Expiar a dor que me sufoca. Escrevo porque quero reviver, recriar, eternizar. E por que preciso entender. Desvelar e derrubar minhas certezas. Ai! Me falta tanto ar. Me falta tanta luz. Me falta tanta vida. Me falta razão para continuar. J. é um mundo. É o mundo inacessível dos meus sonhos e de todo meu desejo. De todo meu encanto. Amor. Admiração. Realidade.

J. é silêncio e eu quero cantar sua alma. J. não me quer no seu espaço e eu quero povoar suas sensações mais profundas. J. é solidão e eu quero deixá-la só, mas repleta de carinho e de paixão.

La Valse d’Amelie