Será falta de fair play arrancar sua cabeça e usá-la como bola?

Será falta de fair play arrancar sua cabeça e usá-la como bola?

Isso aqui não é a “Reader’s Digest”. Leitores sem estômago para a leitura devem sair agora ou se calar para sempre (pelo menos, até o último parágrafo). Vou começar escrevendo como faria um velho escriba que não sou. Provenho de uma época em que se jogava futebol na rua, rachas no terrão do lote baldio ou cu-de-boi sobre a laje fria de uma sepultura (juro pelas chagas de Cristian & Ralf), descalço, chutando qualquer coisa que fosse redonda, inclusive uma bola de cobertão, que era mais bem tratada que uma mulher: com muito carinho, cuspe no bico e sebo de vaca nos gomos.

Certo sábado, apareceu alguém no campinho da várzea sugerindo que arrancássemos a cabeça do diretor da escola para usá-la como bola. O sujeito era um frei pederasta recorrente que já tinha colocado metade dos alunos do quinto ano no colo, durante esforços vespertinos, no fundo da sacristia, para recuperar as suas más notas em Matemática. Mau era o senhor, senhor diretor! Escolas de padres tinham lá dessas coisas. Sacanagem. Apesar da proposta de decapitação ter sido oportuna, justa e popular (afinal, tínhamos bom humor e precisávamos começar logo a pelada), a maioria dos guris achou que aquilo seria prejudicial e selvagem demais à saúde do gramado. Melhor seria adubá-lo com terra preta e coco de galinha, não com miolos.

Brincadeiras às favas, improvisávamos as traves dos gols usando latas de óleo vazias, tijolos de oito furos ou as providenciais chinelas Havaianas, aquelas que não soltavam e continuam não soltando as tiras. Não sei como o Brasilmar conseguia aquilo. Quando bebê, ele fora afetado pela Paralisia Infantil, portanto, ficou capenga de uma perna. Apesar do perrengue neuromuscular definitivo, ele só jogava calçado com as tais sandálias de borracha (um pé de cada número, pois o troncho pé esquerdo era bem menor que o direito), amarradas com elástico de costura, e ia pro jogo, sem frescura ou autocomiseração. Brasilmar catava pra caralho. Foi o melhor goleiro que já vi jogando na minha vida. Mesmo manquitola, quem ficava paralisado com as jogadas elásticas era a gente, pois ele voava que nem um pardal aleijado para operar verdadeiros milagres, ao interceptar aquelas bolas mais difíceis, as chamadas bolas indefensáveis.

Nos últimos anos, ficou difícil defender o futebol brasileiro. Mais que esperançoso, sou um trouxa reincidente. De tal forma que, ao invés de fazer a minha gata miar ao ver estrelas com uma luneta de duas polegadas, ou de ficar pagando de intelectual charmoso no Facebook, acabei por assistir pela TV à derrota da seleção brasileira para a seleção peruana, pela Copa América, com um gol roubado, feito com a mão (eis o Maradona fazendo escola). Quem com ferro fere, com ferro será ferido. Bem feito pro Dunga (chato!). Bem feito pra CBF, acusada na mídia, reiteradas vezes, por supostos esquemas fraudulentos.

Contudo, quero falar, especificamente, dos jogadores de bola, para deixar claro o quanto ando aziumado com tanta frescura, falta de talento, de personalidade e de elã, nesse esporte que é (juntamente com a cerveja, o samba, a malandragem e a punheta) paixão nacional. Por que usei o termo pejorativo “frescura”? Ora, notem como sobra narcisismo dentro das quatro linhas. Sinto saudades dos craques puro-sangue que dificilmente trocavam de time, não postavam o pênis na internet e não lambrecavam o cabelo com gel antes de pisarem as quatro linhas.

Sinto muito, mas não boto fé em zagueiros com peitos depilados, que fazem coraçãozinho com as mãos para a torcida. Outra coisa: quanto mais mascarado o “craque”, maior o número de tatuagens. Bons tempos aqueles em que só marujos, roqueiros, desajustados sociais e homens durões se tatuavam. Não engulo, por exemplo, os marmanjos mimados que choraram após a surra de sete a um contra os alemães no Maracanã. Senti vergonha por eles. Quando um desses molengões, por acaso, mete um gol e se ajoelha no gramado com os fura-bolos apontados para o céu, sinto indescritível gastura e fico a pensar: Meu Deus, aonde é que vamos parar com esse excesso de fé e com essa falta de craques no Brasil? Por que eles pararam de nascer depois que a seleção do Telê perdeu para a Itália no Estádio Sarriá em 1982?

Pela volta imediata dos dribles desconcertantes, unamo-nos! Pela humilhação dos cabeças-de-bagre, com canetas, meias-luas e chapeuzinhos, roguemos ao Pai! Que seja permitido aos goleadores natos entrarem na área, costurando os zagueiros, até entrarem com bola e tudo, doa em quem doer! Abaixo a matança desenfreada dos contra-ataques perigosos, engendrada pelos volantes caneludos! Menos embaixadas, mais embaixadinhas! Fora, treinadores retranqueiros! (cambada de derrotados sem sangue nos olhos) Viva o drible do elástico! Pela beleza e técnica das faltas batidas de trivela, tirando a bola da barreira, colocando-a longe do goleiro, na gaveta (lá onde nem mesmo o Brasilmar cataria), pelo fim da mediocridade em que se transformou o futebol brasileiro, não percamos a esperança! Por fim, conclamo a todos os amantes desse esporte apaixonante que exijamos menos narcisismo desses pernas-de-pau e mais atitude. Pelo renascimento do futebol arte e por mais bolas na rede. Assim seja.