A fofoca é tão gostosa quanto o espirro

A fofoca é tão gostosa quanto o espirro

Vai dizer que não. Fofoca é mania de gente miúda, comezinha, medíocre. Cabeças vazias de pensamentos e ideias. Comportamentos lobotomizados. Fala automática, robotizada. Olhar fosco de tamanha ausência de vida e assuntos. Quer mais definições? A fofoca tem olhos compridos, dentes nos olhos, ainda por cima. Olhares oblíquos e dissimulados. E os sorrisos decorrentes dela? Transversos, tortos, maledicentes. Gotas de azinhavre escorrendo da comissura labial direita. O disse-me-disse deriva da inveja. Ou este sentimento esverdeado, sedento, vampiresco é que provoca fuxicos de toda ordem? Mistérios do cotidiano relacional. 

Podemos arriscar, indo um pouco mais longe. Afirmar que fofoca advém de boquirrotos, mentes esburacadas, anseios e motivações abortados. Cabeças mergulhadas nas novelas, vigilantes da galinha do vizinho e acusatórias das bolsas falsas “Lui Vultão” metidas a Louis Vuitton. O dedo em alerta, indicador cioso de seu ritual condenatório.  “Assim é se lhe parece” acrescentaria a picardia explícita do dramaturgo Pirandello.

Dissecações à parte das variantes do cochicho maldoso há um fato inconteste. Inúmeras pessoas consideram a fofoca tão prazerosa quanto o ápice sensorial provocado por um espirro. Ou, melhor ainda, uma orgástica sucessão deles.

Aahhtchim! Primeiramente anunciam-se os preâmbulos, o antepasto do espirro, promovendo climas de suspense e pré-avisando você de que eflúvios dionisíacos estão céleres, a caminho do seu nariz. Aaaaaaaaahhhh. Finalmente eclode o gozo: …tchim.

Ui delicia. Ou vai negar que o nariz é o pênis do nosso rosto?  Secreções, corizas, resfriados, cócegas, alergias múltiplas, tudo passa por este órgão dos sentidos. Olfato. Os cheiros tentadores da carne assada e devorada num átimo pelos glutões da mesa ao lado, no restaurante a quilo que você discreta  e ocasionalmente frequenta.

O aroma do perfume distante daquele rosto e corpo tão amados e hoje integrados à neblina de lembranças antigas. Os odores instigantes do homem e da mulher cobiçados. Sensuais. Langorosos. Promissores. Luxuriantes.

Porém, ressaltemos, há no mínimo uma diferença entre a fofoca e o espirro. A fofoca pode provocar certa culpa ou encabulamento em quem deixou cair frases viróticas — na liquidação de apodrecidos discursos — no chão. Papo jogado fora, à espera de ir para o lixo.

Quem profere e perpetua comentários maledicentes, a maioria inverídicos, importa advertir, se esta criatura possui  o mínimo de consciência enfiada em algum canto do superego,  uma débil e puída capacidade de autorreflexão — é certo que  a vergonha e  o rubor se manifestarão mais cedo ou mais tarde.

Uma tosse teatral, um pigarreio desajeitado, a vívida imagem de um avestruz, plantado no coração da Austrália, enfiando a cabeça nos terrenos arenosos do seu ziguezagueado trajeto de bípede costumeiramente nervosinho.

Espirro é um gozo às claras, quanto mais alto e intenso mais desfrutável, embora as danosas e perversas regras de etiqueta sugiram discrição, comedimento neste ato. “Espirre baixinho que a ópera já irá começar” aconselha seu indefectível amigo talhado para determinados eventos culturais marcados com antecedência na sua agenda de lazer.

Contemplemos agora outros deleites da intimidade. Espremer cravos do namorado, aqueles grandões alojados no narigão dele. Ou outros suculentos eclodindo bem no meio das costas do seu tolerante parceiro. “Deixa amor, deixa amor. Este aqui ó tá grandão, humm. Este outro — fantástico — já se transformou em espinha e tem até um pus de brinde, bem ao alcance desta excitada espremedura. Deixa amor, vai”.

Antigamente, nossas avós ou bisavós, dependendo da sua idade, nos contavam acerca das latinhas de rapé. Muito chiques, almejadas, manuseadas todas às vezes nas quais se buscava sentir cócegas, frêmitos nasais, o mais puro êxtase, enfim. Talvez, se você ficou curioso, amigo leitor, ainda tenha sorte de encontrar por aí, nas tabacarias da vida (e nos versos de Fernando Pessoa) as bem afamadas caixinhas de rapé.

Outro prazer enrustido: as coceiras. O dermatologista proibiu cocar o braço, para não gerar ferida. Mas quem diz que você obedece.  Segue-se outra cultuada  e  proibitiva mania: soltar peidos às escuras. Ou às claras, mesmo. Quanto mais altos e fedidos esses peidos, mais imponentes e poderosos serão. Verdadeiros trombones alojados na orquestra do seu ânus.

Câimbras. Já tentou forçar o surgimento de alguma? Certo, não nos referimos aqui àquelas que o deixam paralisado, eriçado de dor. Mas as câimbras fininhas, faceiras e adolescentes, que irrompem dos seus pés, quando menos espera. Prossigamos. Estará você pensando agora nas pequenas dorezinhas bem vindas? Os diminutos incômodos que resultam, por exemplo, das peles puxadas  e arrancadas dos cantos do dedo anular direito.

Tirar meleca. As crianças declaradamente adoram. Ficam escondendo suas preciosidades acumuladas debaixo de mesas e carteiras da escola. Às vezes conseguem a façanha de aglomerar uma bola gigante, com as secreções um tanto ressequidas extraídas das sempre proativas fossas nasais.

Um pouco de pudor, por favor. Compostura interessa ao seu currículo, alguns assuntos são interditos. Até porque as pessoas Vips, que nadam em banheiras de ouro recheadas de cédulas verdinhas, refutam sua semelhança com as de outros meros e miseráveis mortais.

Muito rico destila a firme convicção de que não faz coco. Ao contrário: produz bombons licorosos, concorrentes de uma requintada chocolataria. Também não urinam — lógico que não. O que sai desta nata social, salpicada de empáfia e arrogância, é o puro malte de um afamado uísque escocês.

Curiosidade: já reparou como gente chique quando dirige seus possantes carros, se esquece de que há diversas viaturas à sua volta, no trânsito sempre congestionado. Assim, sai tirando meleca a rodo. Sugando os dentes de um jeito feioso, tentando recuperar os fiapos teimosos da manga saboreada na sobremesa de ontem à noite.

Mon dieu. Exclamarão chocados os parisienses. Desolador constatar a existência de cenas do gênero, ruminam alguns gourmets, enquanto caçam, na soberba louça de porcelana,  escargots aux fines herbes  (caracóis com molho de ervas finas) de suas renitentes conchinhas.

Bom, devemos confessar neste momento, pois a situação é evidente, que este texto está repleto de fofocas. Gossips, como nomeariam os americanos. Mas trata-se simplesmente, esperamos que compreenda, de eventual catarse psicanalítica, vá lá.

Uma catarse, aliás, acompanhada de um intrometido resfriado que não tem deixado o meu delicado e tímido nariz em paz. Desculpe, então. Mas é inevitável: precisaremos concluir esta crônica em alta sonoridade. Aahtchiim.