Alcatra! Alcatra! Alcatra!

Alcatra! Alcatra! Alcatra!

Hoje acordei com uma nova habilidade. Como num passe de mágica, agora, assim, do nada, além de ser capaz de me sentir plenamente só no meio de uma multidão animada, ou, ao contrário, de me sentir muito bem, desacompanhado, na solidão de uma pedra às margens de um rio, eu aprendi, não sei como, não sei por que, não sei até quando, a ler a mente das pessoas, de todas as pessoas, inclusive você. Não queira entender, não insista: acordei assim e ponto. 

Eu posso ler os seus pensamentos, infeliz. Eu posso ler os seus pensamentos infelizes e, quiçá, com muito custo, os seus raros pensamentos felizes que lutam para se livrarem das mordaças interiores. É uma pena que os tais designers de interiores, profissionais especialistas em aparência material, não penetrem nos cérebros das pessoas com a mesma desenvoltura e leveza com que penetram no concreto, para o bem maior da superfície, para o regozijo da visão, tornando o ambiente interior muito mais aprazível.

Quando eu digo que leio as mentes, refiro-me a uma espécie de captura involuntária. Não há nenhum tipo de filtro durante a interlocução que bloqueie esta minha mais recente habilidade. Os pensamentos eu os vejo como se fossem legendas flutuantes, pairadas no ar, a minha disposição, à medida que um determinado indivíduo — seja ele um homem, uma mulher, uma planta, uma rocha, um animal — siga a rasgar o verbo. Acontece que pensamento é verdade; e a palavra, enganação.

Tudo começou com o cãozinho lá de casa. O pequeno vira-latas virou-se para mim, abanou o rabinho, semeou pulgas sobre o tapete e lampejos de alegria dentro do lar. Ele parecia até mesmo me sorrir latindo, como dizia aquela velha canção do Roberto. Então, o titiu pensou: Lamber! Lamber! Lamber! Foi o único pensamento com concordância honesta que obtive hoje, podem acreditar.

Então, o bicho disparou a me lamber numa disposição danada, como se eu fosse um suculento bife de alcatra, repleto de satisfação, vazio de segundas intenções. Enchi a tigela do au-au com um copo-medida de ração light (recomendações médico-veterinárias, querido totó) e o bicho danou a pensar, enquanto engolia aqueles grãos insossos: Alcatra! Alcatra! Alcatra! No caso do pulguento de estimação, não se tratava de mentira, mas, fantasia. Só isso. Quase todo mundo fantasia, principalmente crianças, mulheres, poetas e mentecaptos.

Saí de casa. Desci o elevador acompanhado pela decadente senhora do décimo oitavo andar. Eu soltei um caloroso “bom dia”, como se hoje não fosse uma segunda-feira, como se os manifestantes anarquistas de ontem à noite não tivessem pichado na estátua de bronze do Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana, um “Abaixo a Poesia!”.

Ela, a degenerada senhora, claro, permaneceu calada, decrépita que se encontrava àquela altura da vida, carcomida, judiada, vandalizada, imobilizada de forma covarde, progressiva e irreparável pela tal Doença de Parkinson. Seus pensamentos vinham para mim desconexos, um vomitório de ideias que eu simplesmente não consegui captar de jeito nenhum, por mais que me esforçasse.

Quem retribuiu o cumprimento foi a cuidadora, aquela que empurrava a cadeira de rodas com uma elegância poucas vezes vista por quem lida com doentes terminais, uma moçoila bem apessoada, de corpanzil extremamente generoso, deglutível, a qual pensou em letras garrafais (eu juro): “queria fazer amor com este estranho, em cima de uma cadeira de rodas, agora mesmo”.

Saltei dali me sentido a seringa de morfina da UTI. Na garagem, cruzei pelo Senador de Pasárgada, figura ilustre, mas, poluta, filha-da-puta que morava no prédio. O empolado sujeito, invejado por uns, odiado por muitos, resumiu a resenha matinal ao garantir que voaria para Brasília a fim de votar, naquele mesmo dia, matérias primordiais de interesse estratégico para a sociedade brasileira.

Conversa fiada vai, conversa fiada vem, eu lia nos esconderijos da sua cachola que “fora um tremendo vacilo ter engravidado a estagiária da UNB; ter votado com a bancada do governo; ter recusado um agrado da indústria de agrotóxicos; ter levado a família inteira para a praia utilizando um avião da FAB”.

Fui topando com todo tipo de gente normal no decorrer deste dia anormal. Homens, mulheres, bichos, coisas que falavam uma coisa, embora, pensassem outras coisas, ou mesmo, quisessem dizer justamente o contrário daquela coisa, entende? Mesmo sem querer, eu tinha acesso irrestrito a toda verdade, doesse em quem doesse (naquela situação, doía somente em mim), a verdade nua e crua como um pedaço de alcatra, sem que eu me sentisse nem um pouco entusiasmado, conduzido compulsoriamente por um tipo de fenômeno paranormal jamais lido nas revistas de fofocas, nem nas teses de doutorado da Sorbonne, nem nas receitas psicografadas de panetone.

Agora mesmo, enquanto desato a gravata, e escrevo a respeito dos meus desatinos, eu me sinto desgraçadamente cansado, mais humanizado do que um dia eu sequer quisesse. Pior de tudo é saber que as lambidas deste cãozinho, ainda que honestas, jamais salvarão o meu dia, muito menos, esta crônica.