Que saudade do colo da minha mãe

Que saudade do colo da minha mãe

Quando ela disse que queria sumir, que queria se matar, eu fiquei muito preocupado. A cena era de fazer dó. Contorcia-se no chão em total descontrole, curvada, encolhida, parecia uma cadela friorenta, um farrapo humano com as mãos na cabeça, em posição fetal. Só que ela era uma mulher de trinta e poucos anos a implorar, nas entrelinhas e de forma miserável, o retorno imediato para a pasmaceira do claustro uterino materno. Achei aquele espetáculo deplorável além da conta, então, fiz de tudo para tentar acalmá-la. Era casada, tinha três filhos e trabalhava na empresa que cuidava da limpeza e manutenção da clínica. Foi a primeira vez que nos falamos pra valer. E nossa conversa doeu.

— Minha vida é um nada, doutor. Eu quero morrer! Eu preciso morrer!

— Calma, Dani. Tudo se resolve. Me explica o que houve.

— Apareceram uns homens lá em casa hoje cedo e cortaram a luz. Falta de pagamento, foi o que eles disseram.

— Cadê o seu marido, Dani? Já falou com ele. Ele tava em casa?

— Doutor, o senhor não faz ideia das ruindades que o meu esposo faz comigo e com as crianças. Liguei pra ele, sim. Sabe o que ele me disse? Sabe o que ele me disse, doutor? Que não me aguentava mais. Que estava me deixando. Que eu me virasse sozinha com as meninas e com o papai, a partir de hoje. O senhor deve saber. Não sei se sabe. Meu pai tá morando lá em casa. Ele é pobre que nem a gente. É velho. É sozinho. É muito doente. Ele não tem com quem contar mais nesse mundo, doutor. O coitado tem câncer na boca, fumou a vida inteira, nisso ele esteve muito errado, eu admito. Já lhe arrancaram a língua toda, pedaços de ossos, uma parte do rosto. Meu pai virou um monstrengo horrível, irreconhecível, dá medo, dá nojo, dá dó, é uma lástima. O senhor não faz noção: meu pai era bonito e hoje parece uma caveira, um morto-vivo sentado na varandinha de casa, à disposição da morte e das moscas varejeiras que sobrevoam tanta fedentina, apatia e solidão. Doutor, eu preciso urgentemente da morte. Me ajuda a morrer, doutor, tenha caridade, me ajuda a morrer!

— Dani, me escuta um instante. Presta bem atenção, Dani. Pra tudo se dá um jeito. Não diga essas coisas. Quem sabe, a gente liga pro seu esposo de novo, ele vem aqui, eu converso com ele, tentamos conciliar, apaziguar as coisas. Eu acredito muito no entendimento entre as pessoas, Dani. Nós não somos pedras. O ser humano é um animal pensante.

— Doutor, o senhor não faça uma coisa dessas. Ele é um homem mau. Ele não gosta de gente. Alias, ele nem se parece gente. Ele não me ama já tem muito tempo. Na semana passada, sabe o que ele me disse, doutor? Que agora, além de gorda e feia, eu andava fedida que nem o meu pai, que eu devia procurar um médico, um colega do senhor, um ginecologista pra tratar de mim, operar, arrancar a barriga, apertar a vagina, empinar os peitos muxibentos, secar o escorrimento, tomar uns remédios pra ficar com um cheiro mais agradável pra ele sentir no quarto, na cama, na hora de subir em cima de mim e gemer. Ai, doutor, esse homem não me ama. Descobri que ele anda bolinando a mais velha. Isso eu não suporto. Queria que Deus me perdoasse e me secasse agora, na sua frente, doutor.

— Quem cuida do seu pai em casa, Dani? Quem fica com ele enquanto vocês trabalham?

— Minha filha mais velha, a de 12 anos, aquela que meu esposo namora nas sombras. Os outros dois são pequeninos, não dão conta do trabalho, só querem saber de brincar. Eles são crianças né, doutor? Eles tem que brincar né, doutor? Tinham que estudar também, mas não teve jeito. Esse ano eu não consegui escola pra eles no bairro. Não tinha mais vaga. Meu marido me bateu por causa disso, como se eu tivesse culpa, imagina só. Então, as crianças ficam em casa fazendo companhia pro meu pai. Tá muito dificultoso, doutor. Tá difícil demais. O papai só come pela sonda. Sabe aquela mangueirinha de borracha que passam na garganta de doente que não engole? Pois, então. É preciso bater a comida dele no liquidificador até ficar tudo bem ralinho. Daí, eu injeto a papinha pela sonda, sabe como é? Isso o senhor sabe, o senhor é medico, né mesmo? O senhor me perdoe. É que o tumor não para de crescer, doutor. Ele já quase entupiu a garganta do papai, sabe como? Só entra água e comida mole, e tem que ser pela tal da sonda. Pensa nisso, doutor: como é que eu vou fazer sem luz lá em casa? E mais: ontem, ele arrancou a danada da sonda, nem sei como ele conseguiu força praquilo, pois o coitado tá que é só pele e osso, como eu já disse. Acho que ele também já se cansou de viver, doutor. Não tenho dinheiro pra comprar sonda nova pra enfiarem na goela dele. O pessoal do postinho de doenças disse que o governo só libera uma sonda por mês pra cada paciente. Acho que esse pessoal pensa que a gente vai sair pegando sonda sem precisão, pra vender pros outros, pra fazer dinheiro com a desgraça alheia. Imagina só isso. Imagina se eu ia fazer uma baixeza dessa, doutor.

— Dani, que tal a gente chamar o seu supervisor, o dono da empresa, pra virem aqui na clínica, pra gente conversar. Eu ajudo. Tenho certeza que eles vão ajudar também com essas despesas, pra mandar ligar de volta a energia elétrica da sua casa, comprar sonda nova… Me diz o telefone que eu mesmo ligo lá e os chamo.

— O senhor não sabe da última, doutor. E é justamente por isso que eu desesperei, que eu desabei, que eu me joguei no piso desse banheirinho: eu acabo de ser demitida. Deve ter sido por causa das faltas. Deve ter sido por causa de tanto atestado médico. Eles têm razão. Eu faltei muito. Eu fui ruim com eles. Me demitiram, por telefone, não tem nem cinco minutos. Hoje é meu último dia aqui na clínica. Mandaram eu passar amanhã cedo na empresa pra assinar papel, fazer acerto e coisa e tal. Ai, doutor, me perdoa. Eu não consigo mais. Eu quero sumir. Eu quero morrer. Ai, que saudade que eu sinto do colo da minha mãe.