Você é livre?

Um dia ainda vou morar numa casa à prova de medos. Será um casebre de pavimento único edificado com madeira pedra e tempo de sobra. As horas sofrerão de ansiedade enquanto eu rio e deságuo. E por falar em doce vingança serei despertado logo de manhã pelos pingos de uma rápida chuva de verão que vai tilintar dentro de um prato-esmaltado-que-se-come-frio esquecido propositadamente do lado de fora.

No íntimo eu sei que vai contra todas as normas da etiqueta deixar os utensílios jogados assim daquela forma de qualquer jeito no chão. No entanto àquela altura da vida já terei evoluído para um estágio de homem também jogado para além dos dogmas e das aparências. Não me atentarei para tal tipo de convenção social já que pretendo almoçar todo santo dia apenas quando sentir fome a despeito de sirenes de intervalos e de ponteiros de relógios sentado num banco de areia recostado na parede do meu rancho simplório assistindo à correria vacilante das ondas. Será que elas vêm? Será que elas vão?

Vocês perguntam por que é que eu não terei modos e comerei à mesa como qualquer pessoa normal? Se gozar da companhia mais certa de gente situada fora da curva da normalidade eu penso em utilizar a mobília da sala de jantar para banquetes escandalosos e memoráveis comidos nus com a porta e as janelas escancaradas. Em tempo: esse futuro lar possuirá apenas uma porta para o trânsito dos corpos presentes. Que os fantasmas se contentem em continuar atravessando as paredes sem serem notados.

Um dia espero morar numa casa notável descomplicada sem impostos a pagar sem cacos de vidro encrustados sobre o muro e sem redes elétricas de proteção antifurto. Hei de catar frutos no pé enxotar joaninhas descascar mangas com os dentes feito um cão chupador de mangas. Ainda não me decidi se edificarei esse reduto dos sonhos defronte um lago um vale ou um rio. Com tantos quilômetros de litoral atlântico por que não o faria de frente ao mar? Isso mesmo. De frente ao mar. Boa.

De acordo com meus cálculos renais buscarei na vila de pescadores um peixe ao dia. Porção para duas pessoas se é que me entendem. Se colar farei do escambo a moeda corrente entre eu e meus amigos pescadores. Quero desaprender a contar dinheiro para nunca mais temer a flutuação do dólar no mercado financeiro. Mercado de peixes: espero ser fisgado por ele para permanecer vivo.

Penso em nunca mais calçar sapatos. Que nem o meu cachorro. Em termos de liberdade vou me igualar a ele. Viraremos latas juntos. Seremos os nossos melhores amigos. Animais de estimação numa estimativa deveras plausível. Se o meu destino for morar na orla desse país espero engrossar as solas do pés na areia escaldante. Terei pés tão primitivos que ninguém da região acreditará que um dia calcei mocassim e pelejei numa metrópole projetada para fabricar dementes pós-graduados nalguma área do conhecimento humano. Terei um velho par de pés tão feios e quadrados que serão os mais temidos pelos espinhosos senões do destino.

Se muito anotarei a minha agenda diária a lápis num saco de pão ou naquele desbotado jornal de embrulhar bananas. Terei apenas compromissos significativos como contar as estrelas do mar ou do céu. Catarei formigas intrusas numa garrafa de mel. Lerei poemas de Mario Quintana até me sentir doce o suficiente para suportar a vida como os homens a fizeram. Ajudarei uma cadela a parir. Enterrarei ressentimentos ao pé de uma bananeira. Farei macaquices para divertir o cego da igreja. Rezarei praquela bola não entrar. Consertarei eu mesmo o telhado. Desistirei de consertar o mundo. Abdicarei das vírgulas. Serei o homem mais livre que já permiti.

Fotografia: National Geographic