Se Deus existisse…

Se Deus existisse…

Há basicamente duas abordagens metodológicas, em posições opostas, acerca da apuração da veracidade dos fatos relativos às coisas divinas: segundo o Minimalismo, o que não tem evidência ou comprovação não pode ser verdadeiro. Já para o Maximalismo, o fato de não haver evidência não é prova de inexistência. Como no trocadilho lapidar de Carl Sagan: “Ausência de evidência não é evidência de ausência”.

Nos primórdios das religiões, nossos antepassados certamente não se apegaram a essas filigranas metodológicas de comprovação da realidade. As religiões se formaram, na maior parte, sob a força das informações colhidas em revelações. E a revelação não é fundada na racionalidade, mas na imaginação fantasiosa, uma espécie de efeito colateral da razão. É mais na base da fé, da livre e exacerbada interpretação dos eventos, sem a mínima crítica da razão. Aliás, a razão diante da fé pode soar como sacrilégio ou heresia.

A revelação procede de várias fontes. A pessoa tem um sonho, como todo mundo tem, e dá a ele (ao sonho) um caráter revelador, como se fosse Deus lhe passando uma mensagem, uma ordem ou uma orientação. O sujeito que recebe revelações pode ouvir a voz de Deus no ranger dos troncos dos bambus, quando o vento os agita. Pode ouvir a voz divina quando o vento roça a boca da cacimba, ver um recado transcendente num relâmpago ou numa moita de sarça pegando fogo. Não só ouve a voz, mas distingue suas palavras e entende a sintaxe das frases. E adota posturas e comportamentos novos a partir das mensagens recebidas em revelações. Garante Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, que ouve revelações de Hugo Chaves pela voz de um “passarinho pequenino” e se orienta por essas revelações.

Uma breve história para ilustrar. Certa vez, um vizinho de sítio devia ao outro uma quantia em dinheiro. O credor era homem de muita fé, bastante crédulo e costumava receber revelações de Deus em sonhos e por outros meios. Na Semana Santa daquele ano, o devedor escreveu com caldo de limão em um ovo de galinha: “O mundo acaba na sexta-feira santa”. Depois passou cinzas para evidenciar as letras. Foi ao galinheiro do vizinho carola e colocou o ovo sob as galinhas poedeiras. Ao fim do dia, quando o sitiante foi colher os ovos, deparou-se com aquele estampando a profecia apocalíptica. Na mesma hora ele correu a vizinhança, feito um Moisés com as tábuas dos dez mandamentos, mostrando o objeto de seu assombro e ao mesmo tempo orgulho, por Deus haver confiado a ele a notícia do dia exato do fim da vida terrena e o começo da vida coletiva no céu. Quando chegou à casa do devedor e anunciou que Deus lhe revelara o fim do mundo na próxima sexta-feira, este fingiu espanto e pavor e disse que tinha medo, mas não era propriamente da morte, porque até se achava um homem justo. O que o assustava de fato era a ideia de morrer devendo, uma vez que não teria tempo suficiente de arrumar dinheiro para pagar a dívida ao credor ali presente. O arauto da notícia nefasta, imbuído de suas convicções transcendentes, retrucou: “Nem eu, meu caro irmão, quero chegar aos umbrais do Juízo Final, levando cadernetas de acerto de contas daqui da terra. Quero chegar ao céu com os pés livres das correntes do mundo. Neste momento, diante das testemunhas aqui presentes, e em nome de Jesus, a sua dívida está perdoada”.

Sempre que vejo alguém muito convicto de suas ideias religiosas me vem à lembrança esse fato corriqueiro do devedor esperto. Toda religião nasceu de algum trambique, pelo menos em parte, e por ele se prevalece.

Para as religiões, sobretudo as monoteístas, Deus existe de fato e nós, seres humanos, fomos motivos de ocupação do criador desde muito cedo. Pelas escrituras judaico-cristãs, o universo físico existe há pouco mais de 6 mil anos. E nós fomos feitos de terra molhada, o material mais próximo da mão, e carregou nossa pilha com o sopro da divindade, a fonte de energia mais imediata. Tão logo fizemos os primeiros movimentos vitais, recebemos determinação de “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra”.

Para a ciência, no entanto, o universo começou há 14,5 bilhões de anos, num processo explosivo de origem desconhecida. Pode ter sido por Deus, mas não pelos deuses das religiões. O corpo celeste que habitamos e chamamos de Terra existe há pelo menos 4,56 bilhões de anos. Como os dinossauros, por exemplo, viveram numa outra era geológica e foram extintos por avarias climáticas, há 65 milhões de anos, e a terra só teria 6 mil, para os religiosos os dinossauros nunca existiram. Esses ossos petrificados, encontrados nas escavações dos arqueólogos, não passariam de engodos espalhados pelo demônio para confundir a cabeça e o coração da humanidade. Por que ele faria isso? Porque a humanidade confusa é mais fácil de ser apanhada e conduzida por desvios. Daí a ser frita nos caldeirões do inferno é um passo. Só não se sabe por que o demônio teria essa fixação de fritar indivíduos de nossa espécie. De qualquer forma, os dinossauros seriam, por assim dizer, só uma estratégia de mercado do diabo.

Para os crentes da existência de um Deus amoroso, tudo o que existe no mundo plausível (e no implausível também) foi feito para servir à nossa espécie, a Homo sapiens. Assim, até as outras espécies humanas já identificadas pelos arqueólogos, como os floresiensis, erectus, habilis, ergaster, neandertais e soloensis, se a existência deles fosse passível de crédito, teriam existidos somente para atender às necessidades de nossa espécie.

Segundo as narrativas sagradas (revelações e profecias), tudo o que Deus fez foi para nos servir, e nós para servirmos a ele. Por isso Deus cuidou de colocar o homem no mundo desde que mundo é mundo. Então, se Deus existisse, de duas uma: ou a gente teria sido feito lá atrás, há 14,5 bilhões de anos ou a Terra teria só 6 mil anos de existência, conforme os relatos santos. E nós também teríamos 6 mil anos. Mas, segundo os arqueólogos, os primordiais de nossa espécie surgiram há cerca de 145 mil anos. Muito depois do surgimento do mundo atestado pela ciência e muito antes do mundo aventado pelos livros sagrados, gerando grande discrepância. Considerando o tempo que Deus se ocupa com as esferas universais, ele só nos incluiu em sua lista de ocupação durante 0,001% desse tempo. E ainda nos colocou num grão minúsculo de poeira do tufão universal. Sinais de que ele nos tem numa conta de importância praticamente desprezível.

Na verdade, o universo passou mais de 14 bilhões de anos como um deserto divino, sem a noção da existência de Deus. Deus só veio dar o ar de sua graça muito mais tarde, bem recentemente, quando, no processo evolutivo, surgiu uma espécie, a nossa, com capacidade de raciocinar. E essa capacidade de raciocinar sofreu um desvio e adquiriu a capacidade de inventar, supor e tomar fatos supostos e inventados como sendo verdadeiros. Deus, como ideia, é o último ser gerado pelo processo evolutivo. É um ser de nosso ramo, nascido dos galhos de nossos pensamentos e revelações. Deus, como as religiões o concebe, não existe. Ao longo da saga humana, muitos deuses “existiram” e foram suplantados por outros mais bem sucedidos. A nossa linhagem, ou a que vier a suceder a ela, se não sucumbir pelos próprios desatinos ou por alguma avaria climática, em alguns séculos ou milênios irá inventar outros deuses que hão de suceder os atuais. Deuses com novas habilidades, mais bem adaptados à realidade plausível e conveniências da conjuntura, mas ainda assim continuarão carecedores do estatuto existencial.