A vida é dura como um osso, mas tem lá o seu sabor

A vida é dura como um osso, mas tem lá o seu sabor

Sem essa que os opostos se atraem. Pura balela. Por mais inconcebível que possa parecer, estava uma agradável noite de domingo. Tinha até lua no céu e chope na mesa. Eu comia uma democrática pizza com a minha gata — Portuguesa pra ela; Banana com Canela pra mim — quando um enorme cão mastim napolitano se aproximou.

A sintonia entre nós foi imediata. Em comum, havia muita perdidão nos olhares. Ofereci ao belo animal de pelagem cinza um pedaço de pizza. Ele disse au, abanou o rabo e, sem modos, abocanhou a iguaria. O canídeo tinha pouca classe e mechas brancas na cabeça, como eu. “Tá perdido, amigo? Bem vindo ao clube” — eu ri; o mastim, não. Apesar da idade, ele se sentia inseguro, desamparado, sem saber que rumo tomar na vida. Do que é que eu tava rindo, afinal?! O animal estava certo. Precisávamos ser mais razoáveis.

Vocês sabem, os cães são criaturas perspicazes, mas, a despeito do que muita gente imagina, eles não entendem tudo o que um ser humano fala e sente. Não. Não é bem assim. Nem a gente mesmo compreende os redemoinhos que esvoaçam por dentro, quem dirá, o adorável melhor amigo de um homem. Pior: ali nos encontrávamos, uns perdidos comendo pizza sob a luz do luar, enquanto arquitetávamos o que fazer para que ele reencontrasse a sua casa, o seu dono, o seu próprio capacho de dilemas. Pena que o bicho refugasse o chope que despejei na concha da mão para que ele lambesse. Ele não lambeu; eu, sim. Parecia um cachorro decente com histórias mais interessantes que a maioria dos homens com os quais eu andava tratando nos últimos dias.

De repente, fomos interrompidos por um estrondo, uma pancada seca, abafada, seguida pelos ais de uma criança. Assustado, o mastim napolitano cascou fora e se embrenhou nas sombras que nos escutavam. Um sujeito muito maior e muito mais forte do que eu acabara de esbofetear um menino nas costas. O guri estatelou na calçada. Se muito, o guri contava oito anos. Indignado, levantei da cadeira e permaneci parado, naquela posição de estátua que está prestes a sair andando.

Não sei que tipo de verdade o moleque disse ao brutamontes — supus que o covarde fosse seu pai —, ao ponto dele perder as estribeiras e surrá-lo daquele jeito, pelas costas, enquanto caminhavam até o carro, uma camioneta de luxo cuja marca pregada na lataria eu sequer conseguia pronunciar. Não tenho essa classe toda que vocês imaginam. A dupla entrou na camioneta e o troglodita saiu riscando o asfalto com os pneus. Mesmo com tanto cheiro de borracha no ar, até hoje não apaguei aquela cena. Espero fazê-lo até o encerramento dessa história, onde me aguarda um final feliz — suponho.

A agressão fez-me recordar dos filhos. Hoje, meu garoto tem 20; minha filha, 18. Ambos já saíram de casa e moram na louquíssima, promissora, pujante cidade de São Paulo. Lá, tudo acontece primeiro, é o que se diz. Nunca bati na minha filha. No meu menino, uma vez, eu confesso. Por excesso de ignorância e falta de sensibilidade para sacar as entrelinhas, dei um tapa no seu traseiro, quando ele tinha uns cinco anos de idade. Ele não chorou. Pior pra mim, que choro até hoje. Ele teimava. Estava sendo grosseiro porque sentia sono e cansaço. Era só isso. Bastava eu ter mandado o moleque ir pro quarto pensar na vida. Deitado na cama, a sua descortesia não durava nem um minuto, até que pegasse no sono e despertasse suave na manhã seguinte. Sim, como sempre acontecia, ele acordou tão alegre quanto passarinho depois da chuva.

O cão emergiu das trevas. Como eu disse no primeiro parágrafo, os semelhantes se atraem. Sentado no passeio público, solidário ao meu drama particular, Blue — batizei o mastim com essa alcunha, pois ele tinha a cor da melancolia que eu sentia — olhou pra mim, coçou o queixo com a pata traseira e, cheio de pulgas e muita compaixão, latiu assim “Não fique triste, estranho. A vida é dura como um osso, mas tem lá o seu sabor”. Mais perdido que um homem quando cai do caminhão de mudanças, pus o rabo entre as pernas e lambi o restinho de chope da minha tigela.