Sinto informar que amor não vence no final

Sinto informar que amor não vence no final

No pesadelo que sonhei acordado João matava Tereza que matava de amores Raimundo que morria de medo da polícia que subia o morro armada até os dentes e matava suspeitos muitos deles negrinhos desdentados que matavam serviço o tal do trabalho que enobrecia o homem e enriquecia outros homens que lotavam as igrejas com matilhas de homens em prol da fé que removia montanhas numa vontade tamanha que atravancava o progresso do mundo idealizado por deus-pai-todo-poderoso que sabia muito bem o que fazia e que tinha sim piedade de todos nós que não tínhamos piedade de ninguém nem de nós mesmos pobres diabos que morriam de medo de sair de casa fosse noite fosse dia fosse o sol fosse a chuva que desaguava sobre terra e matava a sede dos homens que matavam os rios que morriam no mar que inspirava os poetas que padeciam da mesma delicadeza de um certo poeta mineiro nascido em Itabira que morria de desgosto por causa das bombas que matavam velhinhos que quase nunca queriam morrer e mulheres que quase sempre queriam viver para serem amadas até que a morte as separasse dos seus amantes e crianças que matavam aula por pura molecagem por puro fingimento pelo reles prazer de brincar de mundo-melhor que diga-se de passagem ia de mal a pior na minha opinião de miserável escritor que não morria nem um pouco de amores pela humanidade que andava desumana e matava a poesia que insistia todo santo dia num exercício intermitente esdrúxulo aparentemente inócuo de tentar renascer ternura no coração dos homens adultos as criaturas mais endurecidas que se tinha notícia desde que foram semeadas as tais pedras-do-caminho e que matavam sem sentir remorso as crianças outrora puras que brincavam nos quintais da infância onde ninguém matava ninguém senão por brincadeira num comovente exercício de bem viver no exato instante em que eu quase cria que o bem fosse vencer no final.

(Em memória da jovem estudante Nathália Zucatelli, brutalmente assassinada ao sair de uma escola em Goiânia, em fevereiro de 2016)