Se eu conseguisse dormir, juro que sonharia com você

Se eu conseguisse dormir, juro que sonharia com você

A vida naquele edifício era difícil. Ali ninguém dormia. Assim como ocorre com o excesso de luz, a falta de sono também ensandece. E quem quereria ser louco num mundo que os rejeitava? Eles não tinham escolha. Eles tinham insônia.

O inquilino do subsolo, por exemplo, era um veterano escritor sem talento que deixara a barba crescer como se fora um selvagem. Gostava de andar na moda. “Agora que já tenho uma barba, posso escrever como Ernest Hemingway escrevia”. A vaidade lhe tirava completamente o sono.

No primeiro pavimento, morava um poeta com tendências suicidas. Ninguém no condomínio levava a sério os seus intentos de morte. Ora, se quisesse mesmo se matar, já tinha se mudado para a cobertura, de onde poderia voar com o seu par de asas de pedra, era o que todos diziam. Então, bebeu copos de formigas, cheirou carreiras de cupins, engoliu uma estrela-do-mar que tinha soluços. Rimou amor e dor — aqueles versos alexandrinos eram de matar. Tentou se enforcar com teias-de-aranha, com as tranças da musa Rapunzel. Abriu a veneziana. Encarou o céu. Pulou do tédio. Sobreviveu a uma rima rara. Deixou aberta a válvula do gás hilariante, mas continuava achando a vida sem graça. Pouca gente compreende as angústias de um poeta. Por que ele, simplesmente, não tentava comprimidos para dormir, eu não compreendo. Eu os tomaria. Ora, todo e qualquer condômino daquele prédio daria qualquer coisa por uma noite completa de sono.

Na quinta laje, morava uma prostituta no auge dos negócios. A pujança, a juventude, a vontade de viver, o aroma viciante de hormônio que exalava dos seus poros explicavam o amontoado de clientes na escadaria e a lava de sêmen que ensopava o corredor. Uma placa na porta dizia “Fica na sua, vizinho. Mulher trabalhando”. Outra placa na parede, pregada pelo zelador — há sempre que se zelar do amor — , advertia “Cuidado. Piso escorregadio”.

Desde que derrubou a mãe da garupa da motocicleta, o morador do terceiro andar nunca mais dormiu uma noite inteira. Aconteceu assim: por causa da aceleração súbita, a velhota desequilibrou, desgarrou da cintura do filho e… Pimba! Estatelou no asfalto feito um saco de ossos. Era ele fechar os olhos e enxergar ‘la madre quicando en el camino’. Foi uma cena terrível, imaginem só. Não era pra ele sentir remorso. Acidentes acontecem o tempo todo, ninguém duvida. Porém, no apartamento trezentos e dois, o sujeito morria um pouco a cada dia. Por isso mesmo, repelia a cama. Aliás, ninguém naquele prédio dormia. Será que eu já lhes disse isso? Vocês sabem, a insônia corrói a memória da gente.

No oitavo andar, passava as noites em claro um artista famoso em busca do anonimato.

No sexto, um padre viciado em ouvir pecados não pregava os olhos por causa da síndrome de abstinência.

E por falar em mau hábito, tinha um sujeito no sétimo andar que se amarrava em solidão. Sentia-se muito bem, obrigado, mas, nunca dormia. Por outro lado, escrevia feito o cão.

Os uivos de uma professora de matemática capacitada para orgasmos múltiplos escapuliam do quinto andar e, pelo andar da carruagem, logo, logo, iriam parar na pauta do síndico na próxima reunião de condomínio. Não fosse ele próprio o seu esposo.

No quarto andar, um homem podre de rico perdia noites de sono contando dinheiro. Ninguém guarda um milhão em casa. Ele guardava. E contava. E se perdia no meio da conta. Daí, espreguiçava, ria, começava tudo outra vez. E se julgava muito feliz, nem um pouco miserável. Portanto, não sentia sono algum.

No segundo andar, segundo me contaram, morava um velho solitário cuja família evaporara do convívio. Não vou arriscar que ele tenha morrido dormindo, pois, conforme eu já disse e disse e disse e disse, não era nada fácil a vida num edifício em que ninguém sequer cochilava. Um dos condôminos se tocou que algo não cheirava muito bem quando uma nuvem de borboletas coloridas começou a sobrevoar o prédio. Se tinha urubus nas imediações? Não. Não tinha. O mais próximo deles acocorava-se numa antena de TV para apreciar o lindo ruflar das asas na janela do duzentos e quatro. Pode não parecer, mas, essas aves têm bom gosto.

No décimo pavimento, por mais estranho que possa parecer, sofria com a falta de sono, um homem feliz, saudável e desencantado com a morte. Não sei explicar por que motivo ele ainda morava naquele endereço. Provavelmente, só para entrar no fim dessa história.