A vida é muito curta para se pagar todas as dívidas

A vida é muito curta para se pagar todas as dívidas

Observe aí na sua família. Deve ter vindo ao mundo recentemente um novo rebento. A esperança de todos de que o sobrenome preservado com carinho, de geração em geração, terá continuidade com esse que acaba de nascer. Figurinha frágil, que tem cara de joelho, mas todo mundo diz que é lindo demais.

Pois é. Esse pobrezinho tão frágil que você nem tem coragem de apertá-lo num abraço, embora tenha vontade, já veio ao mundo devendo trinta mil reais, contando só as dívidas do Governo. A bíblia nos garante que temos a dívida do pecado original que a gente vai pagando com o suor do rosto, com a penúria do dia a dia. Se sua família é de alguma linha de pensamento orfista que tem por núcleo a ideia da reencarnação, esse pequeno pode ter vindo ao mundo já com dívidas de vidas passadas, um carma genérico sem caderneta que totalize o saldo. Só se sabe que a dívida de vidas passadas nunca é pequena, tanto é que conseguiu migrar junto com o espírito de uma vida pra outra.

Se o pequeno pudesse entender a conversa dos adultos, ele iria compreender que as pessoas em idade produtiva têm que trabalhar cinco meses por ano só para pagar a dívida dos impostos correntes, sem abater um centavinho sequer daquela monumental dívida de nascença de 30 mil reais. Iria perceber que tem dívidas da casa própria, da água, da luz, do plano de saúde, do condomínio, da escola, do crédito educativo, do empréstimo consignado, do cheques especial, do cartão de crédito do IPVA, do IPTU, da empregada doméstica, da previdência oficial, da previdência complementar, do supermercado, do agiota ocasional, da Pax Domini e por aí afora. Ou seja, cada pessoa é apenas um cabo de força por onde passa a energia monetária. Com muitos apagões, obviamente.

Sem contar as chamadas “dívidas de gratidão”. Aquele pequeno terá uma dívida de gratidão enorme para com a mãe, que o amamentou e cuidou dele com esmero em seus primeiros anos, na segunda infância, nas maluquices da adolescência trivial e na falta de expediente na adolescência retardada. A mesma dívida, em proporção menos densa, terá para com o pai que lhe deu (ou não) sustento e fez figura masculina em casa, a mãe de leite, as tias, a babá, os primos mais velhos que o levaram para conhecer a vida além dos muros, os avós que dele cuidaram com maior liberalidade dos que os pais e lhe deram presentes com muito fervor. Essas dívidas são cotadas em outras moedas, moedas de gestos de retribuição, sob pena de você ser tachado de ingrato diante de toda a família e amigos em geral. Não gasta dinheiro, mas requer dedicação e tempo. E até empatia para se colocar no lugar dos outros em situações mais controversas.

É tanta dívida, que sobra pouco espaço para a vida plena. Parece uma maldição semântica: a palavra “vida” está contida em “dívida”. Para se viver com o mínimo de dignidade é preciso abstrair-se das dívidas. Se levarmos em conta que dívida não é uma coisa boa, não sobraria espaço para coisa boa na vida. Pois semanticamente a palavra “dívida” é maior que “vida”.

Mas há uma sabedoria do senso comum que diz: “Dívida não se paga; dívida se rola”. Porque se a gente for levar a vida a ferro e fogo, querendo quitar todas as dívidas, vamos morrer doido ou seco, sem as condições mínimas de curtir algum prazer em nossa passagem pelo planeta. Precisamos deixar dívidas para as próximas gerações pagar. Ou rolar, se melhor lhes aprouver. Elas são o contrapeso de nosso legado.