Se tudo der certo, em cinco anos estarei louco

Se tudo der certo, em cinco anos estarei louco

Grilei quando o sujeito perguntou se eu sabia com quem era que eu estava falando. Bem, eu não estava nada interessado em conhecê-lo, só queria que ele retirasse o veículo detrás do meu para que eu saísse do estacionamento. Parecia um pedido razoável de quem precisava ir e vir, se escafeder, cair fora, dar no pé, correr atrás do prejuízo. Com medo de um soco, pensei, mas não falei: Ora, esse estranho me parece um homem ordinário como eu, como outro qualquer, só que cheio de empáfia e muito sangue nos olhos.

E aquele cara sabia das coisas. Quero dizer: ele sabia que eu não sabia com quem eu estava falando, e isso não era pouca porcaria, considerando que eu andava mais perdido que um rio morto que corre sem esperança, sem viço e sem peixes em direção ao mar, que é o céu dos córregos, dos riachos e dos riachinhos. Querem saber de uma coisa, pessoas? Navegar é preciso, mas, sem barco ou um diabo que me carregue, fica difícil.

O desencontro com aquele memorável escalador de giletes — fiz questão de não gravar o seu nome; só sei que era um emaranhado de consoantes emendadas umas nas outras, ininteligível feito sopa de letrinhas — até que serviu para alguma coisa além da vontade de enfiar os dois dedos indicadores na boca e rasgar o seu rosto ao meio. Vi isso num filme ninja. Sim, vocês têm razão: de tanto pensar em humanidades, ando sonhando com atrocidades em plena luz do dia.

O papo-torto com aquele desimportantíssimo interlocutor — que se dane se o sujeito conhecia o Arc de Triomphe como a palma da sua mão, ao passo que eu ejaculara em pé sob os Arcos da Lapa, na palma da mão de uma triunfante profissional do entretenimento — fomentou o desejo de traçar o meu próprio perfil, de maneira minimamente honesta, para que vocês, os leitores, tenham ideia com quem estão lidando.

Tenho cinquenta anos mal vividos. Penso que vou morrer de bala. A bela da tarde aparece nos meus sonhos quase todas as noite, mas some, nem bem amanhece o dia, a deixar aquele cheirinho de sêmen no lençol da cama. Nem venham! Tem tempo que não sofro de poluções noturnas ao sonhar em ficar rico. Um pobre diabo voltou para o inferno ao saber que não, eu não cria mais em almas e testes-cegos com sabão em pó. Só não vê quem não quer: não há nada de novo no front. Se tudo der certo, em cinco anos estarei louco. Não uso gravatas, pois não sei se resistiria à tentação de me enforcar com uma delas. Não tenho certeza se quero morrer de velho. Valha-me Deus se os ateus se esquecerem de me convidar para a happy-hour. Triste mesmo é abrir a geladeira e me deparar, não com uma cerveja, mas com um cadáver de alma vazia. Por causa desta e outras, declinei de um convite para trabalhar no IML. Só pego no sono após seiscentos ml de cerveja na cuca. Meu corpo tá um caco. Corro vinte quilômetros todos os dias num carro que não é do ano. Eu também não contaria a vocês se tivesse muito dinheiro no banco ou hemorroidas no ânus. Por falar nisso, sou heterossexual. Espero continuarmos amigos, apesar disso. Não me amarro em sexo grupal. Não me amarro em solidão-a-dois. Não amarro mais o meu tênis sem usar uma cadeira como apoio. Não riam, a coisa é séria. Sou um homem de pouca fé. Contudo, aquele convite para salvar o mundo com música continua em pé.

Perderam, playboys! Não vou dizer quanto ganho por mês. Sejam razoáveis, uma coisa de cada vez: vocês começaram a me encher primeiro. Depois que me aposentar, penso, finalmente, em trabalhar sem fins lucrativos. Deixa eu lhes explicar, cada um faz da própria vida o que bem entender: fulano aplica na bolsa, cicrano aplica na veia, beltrano aplica um golpe na Previdência Social. Eu invisto quase tudo o que sobra em poesia e paz de espírito. Quero ser mais lido que bula de remédio. Quando eu morrer, além da vala, gostaria de ir para onde vão os artistas, mesmo que seja o céu.

Ah… Em tempo: o sujeito desobstruiu, sim, a minha saída, e saiu cantando os pneus de um carrão cujo vidro traseiro levava um adesivo com a frase: Jesus te ama, mas eu não. São coisas que acontecem. Não se pode agradar a todos.