A ditadura não amoleceu o povo

A ditadura não amoleceu o povo

Nosso povo é doce. Mas, também, duro de roer para espanto de alguns políticos, ainda nadando serenos na empáfia que os cega para as urgências sociais do nosso tempo. Hoje o Brasil  exibe faceiro sua poligamia ampla, geral e irrestrita, estabelecida com todos os cidadãos. Seu status de nação namoradeira e apaixonada por seus filhos. Um incesto limpo, risonho, desejado, consentido.

Reverberamos e retribuímos sem reservas este hiperbólico e tropical afeto, tocados por uma vibração escandalosa, gritada ruas acima e ladeiras abaixo, em cada capital, e estendendo-se a mais de 100 cidades espalhadas pelas curvas da nossa geografia.

A efervescência das cenas históricas que revestem a atualidade nos traz energia concentrada, explícita adrenalina, secundada por taquicardia eufórica e tensa, paralelamente. Assistimos encantados a um irrecorrível caso de amor do povo por sua pátria e vice-versa.

As gerações que navegaram nos rios de 1964 foram espancadas pelos sórdidos e velados métodos da grotesca ditadura. Atos institucionais medievos, como o AI-5, cuja única intenção residiu em nos reificar, emudecer, coisificar. Este ato foi o quinto de uma série de decretos emitidos pelo regime militar brasileiro nos anos seguintes ao Golpe Civil-Militar de 1964. Naquela altura, embora atordoados e órfãos da ética e dignidade esvaídas de nossas vidas políticas, nós exibíamos sem disfarces nossos rostos, vozes polifônicas, atônitas e desesperadas clamando por paz, respeito e direitos cívicos em meio à sanha do generalato, sequenciado pelo desfile de cinco governos militares.

“O povo unido jamais será vencido. Abaixo a repressão”. Quase 20 anos de sufoco, até respirarmos exangues o oxigênio aparentemente salvador das “Diretas Já”, no auspicioso evento montado nos entornos da Igreja da Candelária em 1982, no Rio de janeiro.

(Tancredo Neves, o que fizeram com você, hein?)

Retornemos um pouco no tempo para focalizar certas sequências do filme de nossa recente história, protagonizado por todos nós, ou por nossos pais e avós. Presidente João Goulart deposto. Nos anos posteriores, acompanhamos movimentos atuando incontestes, como personagens sem dublês de situações — as quais se denominadas pelo povo em vigília, de meramente “críticas”, cometer-se-ia o pecado dissimulado do eufemismo, articulado em estratégicos e obscuros conchavos de militares.

A década de 1960 assomou marcada por transições significativas também no mundo. Nos Estados Unidos, Robert Kennedy e Martin Luther King foram assassinados. Na Tchecoslováquia, a “Primavera de Praga” retratava jovens aguerridos contra as exigências do socialismo que se pretendia hegemônico, decretado pela União Soviética. Entre os franceses, diversos protestos estudantis atiçavam fábricas em greve interpelando o conservadorismo daquela época.

O general Castelo Branco em 31 de março 1964 abarcou, sob o golpe da ditadura, o comando da nação brasileira, tão estarrecida quanto indignada. Torturas, perseguições bárbaras a estudantes e líderes de movimentos, mortes se acumulando nos porões do DOPS e nas profundezas do oceano atlântico. O horizonte marinho assistia, paralisado através de ondas atadas, municiado somente por espumas raivosas. Espumas que arrebentavam em uníssono em praias imensas da costa brasileira. Corpos sem nome de nossos amigos queridos jogados às águas.

Inúmeras pessoas que em seus lídimos protestos e ideais haviam engolido anseios maiores que sua própria e limitada estatura. Indivíduos quaisquer, amontoados de carne, lançados do alto de macabros helicópteros e aviões. Mortes em série, silenciadas a ferro e fogo. Fatos hediondos, negados veementemente pelos mandatários.

Em 26 de junho de 1968, demos os braços e levantamos nossos sonhos, na Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro. Trabalhadores, políticos, artistas, professores, religiosos e estudantes determinados a repudiar a repressão vigente. Embora dentro de um clima pacífico, este evento constituiu-se como exemplo, incentivando a que acontecimentos de similar natureza pipocassem em outros pontos do país, intensificando o repúdio ao governo militar.

Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais braços dados ou não, explicitava a música “Pra não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré, durante o 3º Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho, em 1968, Rio de Janeiro. A plateia chegava ao delírio. Ressalta-se aqui a barbárie de crimes perpetrados contra Vandré, submetido impiedosamente à lobotomização induzida, lavagem cerebral química.

Enquanto o AI-5 esteve em vigor, de 1968 a 1978, qualquer veículo de comunicação passava por inspeção da pauta por agentes autorizados pelo SNI e pelo DOPS que vetava qualquer notícia de manifestação organizada por estudantes. Música, programas televisivos, programas de rádio, cinema, livros e jornais eram revisados antes de sua publicação. Em várias ocasiões coibiam-se matérias em jornais, divulgando em seu lugar artigos em branco ou receitas culinárias. Infelizmente, estes parcos recursos de que dispunham os jornalistas, na ocasião, jamais, alcançavam seu intento, qual seja — o de despertar e conscientizar a população para os desmandos presentes.

Grande parte das pessoas ignorava as torturas praticadas a esmo, alienadas dos desaparecimentos de gente amiga ou conhecida, causado pelo regime. A truculência do Estado assomava por intermédio dos confrontos policiais, mas não era possível para muitos deduzir com exatidão as verdadeiras extensões das atrocidades cometidas e frequentes.

Caetano Veloso e Gilberto Gil ambos foram expulsos do Brasil rumo a Londres, na Inglaterra, onde permaneceram de 1969 a 1972. Maria Bethânia teve que calar a voz, diante da truculência dos militares. Taiguara acossado. Chico Buarque extraditado também. Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião. O Brasil se expunha sangrando, em carne viva. Pai afasta de mim este cálice, afasta de mim este cálice de vinho tinto de sangue.

A censura movida por sua crueldade paranoica não pregava os olhos. No entanto, apesar de você amanhã há de ser outro dia, a sociedade bradava. Chega de tentar dissimular o que não dá mais pra esconder. Não dá mais pra segurar, explode coração. Artistas desfilavam sob o séquito de proibições ao seu mais puro desempenho. Leila Diniz, Marília Pera, Plínio Marcos, Tereza Rachel, Zé Celso (teatrólogo) entre tantas e efervescentes vozes, tiveram seus discursos emudecidos.

Espíritos indignados com a bestial coerção aos direitos de cada um de ir, vir e se expressar livremente. É pau é pedra é o fim do caminho, cantava Tom Jobim no começo nos anos de 1970. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás” — clamava a cantora e ativista latino-americana Mercedes Sosa, seguida pelas demandas de Violeta Parra e Joan Baez. Gracias a la vida!

Nos anos de 1990 assistimos às “caras-pintadas”. Um movimento estudantil brasileiro verde e amarelo, voltado para o impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello. O levante baseou-se nas denúncias de corrupção contra o presidente e suas medidas econômicas e contou com a participação de milhares de jovens em todo o país.

O século 21 mostra-se diante do mundo mais brasileiro que nunca. O país escancara suas janelas, sacode as verdades empoeiradas, trancafiadas durante anos em solitárias, prisões individuais de uma pseudo passividade.

Uma palavra de ordem, genuinamente tropical e alegremente imperativa, ecoa nos dias atuais pelos cinco continentes. O mundo extasiado ouve a transparência e constata o fervor dos nossos apelos. Parece que os véus negros do conformismo abúlico principiam a abandonar nossos corações. Espantando a tristeza, mitigando a melancolia, sacudindo a letargia. O Brasil boceja e acorda. Repleto de esperanças aproxima-se dos seus cidadãos e cochicha com grande intimidade aos ouvidos de cada um de nós: #vemprarua!