Pula dentro dessa história e viaja comigo

Pula dentro dessa história e viaja comigo

“— Eu opero melhor quando estou bêbado”. Todos naquela sala riram do comentário, exceto eu, que tinha os testículos nas mãos daquele exímio malabarista de semáforos, travestido como médico, prestes a fazer valer o ofício do canivete. Pra mim, ele não passava de um palhaço que, sequer, atendia pelo SUS.

O sujeito fedia à vodca barata — e por falar em insetos, havia uma porção delas enfileiradas sobre o escaninho, assistindo-nos na noite morna — , suava às bicas e tinha a fronte enxugada o tempo inteiro com uma flâmula verde-amarela, por uma enfermeira perfeita, que bem podia ser a minha cara metade, caso eu sobrevivesse àquele procedimento cirúrgico ilegal e melindroso, caso eu saísse daquele cubículo pelo menos com a metade das bolas com que nascera entre as pernas. Eu não precisava mais do que meia gônada e uma vida inteira para fazer aquela belezinha urrar de prazer, lamentar ter nascido mulher e ter ficado caidinha por mim.

Não, eu não estava em condições de prometer nada a ninguém, muito menos, amor incondicional. Nos últimos tempos, eu vinha escrevendo loucamente, trabalhando com afinco para me tornar um monte de estrume no mercado editorial, virar nome de praça, de avenida ou de teatro, se tivesse muita sorte. Rua sem saída, não — por favor, senhores vereadores! O simples fato de me encontrar subjugado àquela corja de descrentes deixava-me enojado, ultrajado e com o cu na mão.

“— Por que vocês estão querendo me prejudicar, doutor?”, perguntei ao cara com macacão de mecânico, mais ingênuo que um virgem quatro-olhos no meio de uma ménage à trois.

“— Você está tentando escrever como Charles Bukowski e isso não podemos aceitar. Vamos cortar o seu saco, atirar os tentos aos jacarés e deixar que você sangre até que o sol nasça ou que o ketchup seque, o que vier primeiro”, disse o outro sujeito, um gorducho mal-encarado, que faltava uma das orelhas e milhões de neurônios, e que fora o responsável pela minha contenção, a fim de que o doutor alcoólatra e a sua adorável auxiliar injetassem tubaína sem gás no canudinho da minha veia.

“— Não, eu não estou imitando o velho Hank, embora, não possa negar a sua influência, não apenas na maneira escrota de enxergar o mundo, mas, no estilo nevrálgico de escrever. Tenho me sentido mais confiante para debulhar em letras tudo o que eu sinto, meus caros algozes. Procuro escrever da forma mais clara e simples que consigo. Deve ser coisa passageira. Tomara. Daqui a pouco, grudo noutro escritor maldito, noutra influência deplorável e pronto. Vida que segue. Acontece que eu andava acabrunhado, raivoso com a humanidade, doido para que o mundo terminasse em barranco, no qual eu pudesse me escorar à espera de um asteroide, de um regaço descomunal, de um revestrés na Big Bang…”.

Eu sentia o corpo dormente da cintura para baixo. Eu tinha que admitir: aquela equipe de crápulas cabulosos — capitaneada por um médico que tinha medo de sangue, cujo registro fora cassado pelo Conselho, a pedido da mãe de algum conselheiro cristão-ortodoxo que não admitia as doses cavalares de palavras de baixo calão, panaceia ateística e de descompostura da minha literatura — fizera uma anestesia incrível, ao introduzir uma dose precisa de refrigerante vencido — uma ampola geladíssima, de superfície brancacenta, que mais parecia a canela de um pedreiro — dentro do meu organismo, o qual padecia trêmulo, sem vestes, sobre uma mesa de sinuca que fora improvisada como maca cirúrgica, para que eles procedessem à tortura — embora eu não sentisse dor alguma, a não ser, moral; ora, se era pra sacanear, por que os putos não injetaram logo uma dose dupla de uísque 12 anos para confundir os meus neurônios? — , assassinato e sumiço da corpo.

“— Vamos picotar o seu cadáver, como se deve fazer aos que plagiam os grandes autores ou escrevem literatura de merda, colocar os pedaços dentro de uma Caixa de Pandora e enviar para a Academia Brasileira de Letras”, explicou o charlatão carrasco, com uma retórica que, de tão fria e didática, remontava aos duros anos da ditadura militar no país. Será que ele se divertira no DOI-CODI, ensinando o que era patriotismo e dor aos presos políticos daquela época?

“— Antes que vocês me matem, suponho que eu tenha direito a um último pedido”, experimentei os caras, tentando ganhar tempo, sabia-se lá pra quê. Naquela trama que eu mesmo inventara, eu não tinha chance alguma de escapar, a não ser que desistisse da prosa e voltasse a escrever poesia.

“— Qual seria o pedido, gracinha?”, quis saber o cara energúmeno e sem orelha.

“— Seria um prazer indescritível fazer sexo com a sua gata, Doc. Suponho que a enfermeira seja sua namorada, certo? Ela me parece incrível, cara…”.

“— Você deve estar se referindo ao Billy aqui, um dos melhores cuidadores transexuais que eu conheço, especialista em pacientes que se sentem na pior durante a melhor idade. Apesar de ter evitado inúmeros suicídios de velhinhos, ele vai adorar te ver morrer. Para nós, será um prazer atender ao seu pedido, medíocre escritor de crônicas. Billy, tira a calcinha e mostra pra esse sujeito com quantos paus se um sete de paus!”.

Para minha sorte, Billy não sabia contar até sete e fez amor gostoso comigo — gostoso sob o ponto de vista deles, é claro — antes que o efeito da anestesia terminasse. Não rezei porque, mesmo àquela altura da vida, ainda não tinha decorado a Oração do Pai Nosso. Eu me lembrava do Navio Negreiro, de Castro Alves, mas, a declamação do poema seria completamente irrelevante e sem efeito prático. Agradeci, sinceramente, a quem inventara o gás hilariante, o éter e tudo o mais que veio depois para anestesiar um ser humano. Eu juro que não senti nadinha de nada, a não ser, que deveria terminar aquela história imediatamente. E assim o fiz. Fim.