Atingi a impressionante marca de 1 milhão de amigos e ninguém pra acender a porcaria do cigarro

Atingi a impressionante marca de 1 milhão de amigos e ninguém pra acender a porcaria do cigarro

Atingi a impressionante marca de 1 milhão de amigos e ninguém pra acender a porcaria do cigarro. Força de expressão. Eu não fumava. Eu não metia há meses. E mais: não permitiam que se fumasse ou que se metesse dentro de hospitais, a não ser a raça médica e o selecionadíssimo corpo de enfermagem cujo índice de rejeição entre os molambos da ala masculina beirava zero.

Aquilo ali mais parecia um presídio, uma igreja ortodoxa, uma escola de se domesticar tapados. Sequer permitia-se falar alto pelos corredores que tinham sabor de pânico formolizado. Era o que solicitava o cartaz da enfermeira bonita com o dedo na ponta do nariz. Queria tanto gritar que estava caído por ela. Foi amor à primeira internação.

Eu já era um escritor de literatura de auto-estorvo bastante reconhecido, mas só me envolvia com mulheres loucas, desequilibradas ou burras. Essas últimas miravam no romance em busca de redenção financeira e algum grau de reconhecimento social. Pura bobagem. Trepavam como se devorassem o último prato de comida do planeta. Era a contrapartida que me ofereciam.

Apesar da pompa, sentia-me miserável. Era mais reconhecido pelos leitores, fãs e seguidores da internet do que pelos vizinhos de condomínio que, aliás, viviam viajando pelo mundo, ou pernoitando em celas especiais para portadores de diploma-de-corrupto-escolado da Polícia Federal, ou permanecendo temporadas internados em clínicas de recuperação para drogados, ou sendo encontrados mortos em chuveiros de motéis com os cintos afivelados no pescoço. Gente muito abastada, quando derrocava, quando atingia a lama do desespero, fazia coisas impensáveis como suicidar em espeluncas para se deixarem encontrar nus, crus, ínfimos, pálidos, pajeados pela sujeira e pelos insetos.

Nunca me sentira tão sozinho desde ontem, quando fui contido pela dupla de maqueiros — praticantes de krav-magá nas horas vagas — para tomar uma milagreira injeção na testa, que fora aplicada pelo chefe da equipe médica, um sujeito que tinha a mesma cara de Jack Torrance em “O Iluminado“, do Stanley Kubrick. Sem dúvidas, aquele doutor calçado com luvas de boxe julgava-se uma espécie rara de semideus, o último frasco de penicilina do deserto, um hipócrita discípulo hipocrático que rezava na cartilha de Josef Mengele, e que fora introduzido nas entranhas daquele hospital de bacanas dentro de uma Caixa de Pandora.

“Sente. Abra a boca. Fala áááááá. Tussa. Deite. Role. Fique em pé nas duas perninhas. Diga trinta-e-três…”. Mas que porra de sacerdócio era aquele, doutor? Sentia-me um cão na mão daquele picolé de zinabre vestido de jaleco e metido a adestrador de molambos. Por causa da condição física deplorável e do humor corrosivo que eu carregava desde que tinha sido expulso do cárcere uterino há cinquenta anos, podia até não parecer um homo sapiens. Mesmo assim, eu me sentia um schnauzer ao ter alguém catando os meus excrementos e depositando dentro de uma sacola de compras do Bazar do Azar.

E por falar em má sorte, onde é que estava a minha legião de fãs incondicionais e de admiradores da literatura de auto-estorvo que lotavam as redes sociais e as caixas postais do meu smartphone? Eu já não me sentia tão esperto assim. Nos últimos três dias, além dos tais três tigres tristes que traçaram três pratos de trigo, eu recebera a visita de três indivíduos: a auditora má do meu plano de doenças; alguém que errou de quarto, pediu desculpas e vazou; e um padre com cara de tudo menos de padre e que falava com o sotaque de Marte. Eu andava tão incrédulo com tudo que não cria sequer que o homem houvesse pisado numa mulher na lua. Imaginem só o grau de ignorância, o nível de desesperança.

Vazio era um adjetivo vago demais, pequeno demais para simbolizar tanta amargura e vontade de pegar descendo, ainda mais naquele domingo ensolarado em que cachorros levavam os seus donos para flertarem e se deleitarem com aqueles churros com doce de leite servidos no parque defronte o hospital. O local estava cheio à beça. Eu estava de saco cheio à beça. Risadaria. Crianças sendo crianças, a despeito dos adultos. Quem diria: viver parecia divertido e extremamente simples.

Enquanto isso, mais um dia ruía. E eu dentro dele: “Sente. Abra a boca. Fala áááááá. Tussa. Deite. Role. Fique em pé nas duas perninhas. Diga trinta-e-três…”.