Para ajudar a destruir um mundo pior

Todos da equipe acordaram com aquele gostinho de sangue na boca. Era como se tivessem chupado um stent enferrujado a noite inteira. Isso parecia até piada, pois eles demonstravam não possuir coração algum dentro do peito, somente ideias mirabolantes. Enquanto dormiam, feriram-se nos lábios de tanto sonharem com um mundo pior. Nada era tão ruim que não pudesse ser piorado. Um deles sofreu um choque anafilático ao morder a própria língua. Não lamentei. O acidente foi merecido.

Os executivos chegaram para a reunião visivelmente excitados. Ainda era cedo do dia, mas havia gente querendo enxugar os chopes da happy-hour ali mesmo, cheirar toda a tubaína de sovaco que conseguissem, fechar um prostíbulo de luxo pra confraternizar com os patrocinadores master. Já tinha neguinho querendo enfiar o dedinho no buraquinho um do outro, antes mesmo de ficar bêbado e deixar a verdade escapulir correndo feito um cão sem coleira.

Ansiavam em pedir a tradicional pizza de estanho derretido com bordas recheadas com dentifrício, acompanhada do geladíssimo desentupidor de pias light sabor cola, “O sabor que te corrói e faz feliz”. Uau! A matilha de marqueteiros achava aquele slogan simplesmente foda. Cada povo tomava o refrigerante que merecia. Destilar os podres da humanidade dava uma fome danada naquela turma.

Eles formavam o famigerado Conselho Editorial da Rede Mantra de Comunicação e estavam animados, em polvorosa, ao saberem do mais recente furo de reportagem detonado pelo famoso tabloide The Sun, que publicara com exclusividade as fotos proibidas do parlamentar britânico John Sewell — um velhote de apenas 67 anos, vice-presidente da Câmara dos Lordes — nas quais ele discutia, entre quatro paredes, os rumos da política britânica com duas eleitoras especializadas em câmeras escondidas, encontros secretos e sodomia, ao mesmo tempo em que chupava os seus hálux com unhas pintadas de vermelho-menstrual, e se travestia com um sutiã de rendinhas que deixava muito marmanjo daquela sala de reuniões remexendo na poltrona de tanta inveja, e se esbaldava pra valer ao sugar com ventas glabras as carreiras de polvilho-que-vovó-não-usa-pra-fazer-biscoitos-pros-netinhos, se é que me entendem.

Ora, quem não gostava de uma farra? Ninguém naquele recinto era santo, muito menos queria estar na pele do velhote inglês. A diferença era que old John fora pego com a mão na massa e nas moças, com a cueca presa no meio das canelas, e isso a sociedade conservadora rejeitava com toda veemência. Todos podiam botar pra derreter, desde que não se deixassem pegar. A manutenção das aparências, boy. Nem que para isso fosse preciso mentir e comprar pessoas.

Nem por um segundo eu me diverti com a miséria do John Sewell exposta em fotos. Eu sabia que aquilo era uma didática dos diabos para vender mais cotas de patrocínio e assustar os cidadãos bananas, mas não gostava de pessoas sendo execradas publicamente porque foram pegas dando vazão as suas fraquezas. Ao discursar para os colegas, o veterano em ménage-a-trois declarou “I got fucked, guys. Goodbye…” e vazou da Casa dos Lordes ao som de Lucy in the Sky with Diamonds, de Lennon & McCartney. Devia ser duro desabar.

Que toda unanimidade era burra, eles não faziam a menor ideia, até porque nunca foram muito afeitos à leitura. A maioria daqueles executivos da rede Mantra se amarrava mesmo era nos treinamentos corporativos, nas dinâmicas em grupo, nas receitas dos gurus, na apresentação de cases de sucesso, nos livros de autoajuda que ensinavam a ganhar dinheiro a rodo e ser feliz apesar disso.

Todos os presentes à reunião concordavam com a premissa de que aquele tipo de negócio — o negócio era o seguinte: garimpar podridão nas cidades, sobrevoar carniças sociais, despejar tonéis de estrume no ventilador, detonar sem dó nem piedade a vida alheia, faturar alto propagando baixarias, esmagar os concorrentes, não dar chance alguma ao bom gosto, enaltecer quem não tinha cultura — só prosperava às custas de escândalos espetaculares, principalmente se eles fossem verdadeiros.

Vocês sabem, à primeira vista, a veracidade dos fatos não importava tanto. Calúnia? Difamação? Isso era arranhão na lataria. Nada que um demônio possuído por um advogado de defesa não convertesse em doações de cestas básicas para entidades carentes, ou à reles prestação de serviços comunitários inúteis, como varrer a praia até a areia ficar doce, por exemplo.

Para todos naquela mesa, o “The Sun” era uma espécie de bíblia, o sol que não apenas os iluminava, como os inspirava profundamente. Portanto, a cada notícia sensacionalista, a cada registro chocante com uma câmera escondida, a cada furo de reportagem, o mundo aos olhos da comunicação em massa ia ficando ainda mais superficial, hipócrita e desinteressante, como se ele fosse um barco furado onde ninguém era confiável. Nem a tripulação. Nem o timoneiro. Nem o buraco no casco. Os sonhos estavam todos naufragando num mar de lágrimas.

Ilustração: Igor Morski