Está todo mundo nu

Está todo mundo nu

Nossa privacidade foi pro espaço. Está todo mundo nu. Literalmente. Alguns, até, nus com a mão no bolso. A intimidade foi devassada, esgarçada, perpassada pelos olhos implacáveis da Era Glass. Não dá pra esconder mais nada da consciência, da inconsciência, do id, do superego, do fantasma horripilante de Freud. Nem dos peludos instintos bestiais que rosnam imperiosos, bem no fundo da nossa barriga.

Hoje todo mundo sabe se você está com a bexiga cheia ou com o intestino à solta. Os banheiros não têm mais portas. Também não há barulho de descarga que disfarce as suas mais íntimas produções. Se você usa ou não usa cuecas debaixo do seu jeans. Bingo!

Nos quizz-shows dos confessionários pós-modernos consegue-se averiguar tudo. Saiu sem calcinhas pra encontrar o cara que te mata de tesão? Não contou isso pra ele, durante todo o almoço regado a lagostas e vinho chardonnay?

Fez caras, bocas e línguas. Deixou, inclusive, nas esquinas úmidas do baixo ventre, um persuasivo “cheirinho de peixe da sua filha”, como entoaria o mega poeta Chico Buarque. Pingou escondido licor de amêndoas em cada olho, visando gerar doces desejos aquosos, gotejando um perfume de olhos de festa de insuperável brilho.

Não dá mais pra disfarçar, explode coração. Aquele ódio, a raiva espumante atrás dos sorrisos polidos, a mágoa gritante, represada pela voz morna e cadenciada de quem passou a vida toda entregue à ioga. A inveja esverdeada pelo sucesso-relâmpago do colega de trabalho. Coisa de escaneamento à queima roupa. Doa a quem doer. Raios-X da escuridão, pousada nos sótãos da alma. Eita devastação.

É impossível esquecer um surreal filme tcheco de 1963, “Um dia, Um Gato” dirigido por Vojtech Jasný. O enredo gira em torno de um gato mágico que usa óculos. Quando lhe tiram este acessório, as pessoas à sua volta começam a mudar de cor, conforme o caráter delas. Os mentirosos ficam roxos, os apaixonados amarelos e assim por diante. Os adultos da vila aonde o animal mora o consideram uma ameaça, mas as crianças o adoram. Incrível.

O saudoso escritor Fernando Sabino já havia dissecado num conto famoso seu “O Homem Nu”, de obra homônima, as agruras de alguém, pego de rasteira pelo imprevisto de uma porta infame. Imagine a aflição do personagem-título ante o breve trecho que se segue “O homem se despiu para tomar banho, mas sua mulher entrou antes e trancou o banheiro. Enquanto isso abriu a porta de serviço para pegar o pão, que o padeiro havia deixado. O homem nu olhou de um lado para o outro antes de sair, viu que não havia ninguém, foi pegar o pão; e quando saiu, a porta bateu com o vento trancando-o para fora”.

A gente se sente assim, empalidecido, no mínimo, quando paga mico. Ou então vermelho de vergonha. Como nos 10 exemplos seguintes, relativos à vergonha alheia de si mesmo.

1 — Quando se é flagrado em mentiras escabrosas.

2 — Peidos desavisados, no elevador do escritório no qual se encontra nada menos que o insuportável chefe.

3 — Entrar no motel com um amante acrobata e dar de cara com o vizinho, bem no quarto ao lado.

4 — Mocinha singela é descoberta pelo professor de Teoria da Comunicação no dia da prova diante de uma cola, afixada bem no meio de suas roliças coxas .

5 — Perder a sola do sapato na avenida-business mais congestionada da cidade. E deixar à mostra a meia velha de guerra do pé direito, com mais furos que tiroteio em favelas.

6 — Chupar dos dentes um fiapo de resquícios de manga, em pleno e formalíssimo banquete, promovendo indecoroso assovio.

7 — A noiva menstruar uma hora antes do casório e não se dar conta do indevido fato. Muito solenemente, a azarada moça desfila pela igreja com o vestido borrado de sangue, bem à vista de todos.

8 — Ir ao toalete, durante uma solenidade, sair apressadamente do banheiro sem constatar que parte do vestido ficou preso na calcinha para desfrute dos presentes.

9 — Criticar em alto e bom som, dentro da igreja a visível caspa do padre, durante missa de domingo.

10 — Encher os seios de silicone de tal modo a se assemelharem com fartas bolas de vôlei, prontas a serem apalpadas por ávidos desportistas anônimos.

Existe privacidade no ambiente online?

O universo digital inaugurou uma nova forma de vigilância e controle. Por meio desta vigilância a nossa privacidade é afetada. Será que somos mesmo ininterruptamente observados, categorizados e controlados?

Segundo a pesquisadora Fernanda Bruno, “Não se pode não deixar rastro. Comunicar é deixar rastro”. Desta forma, a intelectual esclarece, “além ou aquém das informações pessoais que divulgamos voluntariamente na rede (posts, dados de perfil, conversações no Twitter ou no Facebook) toda ação — navegação, busca simples, cliques em links, downloads, produção ou reprodução de um conteúdo — deixa um rastro, um vestígio mais ou menos explícito, suscetível de ser capturado e recuperado”.

Está todo mundo despido. Não tem jeito. Mais que nu. As pessoas, pensamentos, intenções, preconceitos, anseios hoje são cada vez mais transparentes. Pode usar máscaras da cor da sua preferência. Maquiagem exagerada. Colocar uma peruca, quem sabe. Um bigode de ocasião. Acabou o esconde-esconde.

O lance é esse. Nem pense em escapar. Olhos nos olhos. Quero ver o que você diz. (Aliás, vai dizer que ainda não adivinhou que o meu beijo tem gosto de anis?).