Arrancando o véu ao politicamente correto e moralmente safado

Arrancando o véu ao politicamente correto e moralmente safado

Leio as crônicas dos jornais e das revistas semanais como quem busca uma cadeira confortável ao fundo do quarto para aí livrar-se (livrar-me?) do cansaço de um dia estressante. A crônica assim seria como o lago da estória dos famosos Cavalinhos de Platiplanto, criação imortal do agora centenário José J. Veiga. Ou como um passeio tranquilo por uma rua de Quaresmeiras Roxas, do jovem Alexandre Soares Silva — em ambos está o leitor diante de espetáculos que ninguém enjoa de ver…

Há muito, deixei de ler as notas policiais por medida de assepsia mental, tampouco leio mais os obituários por terem se tornado pouco criativos.

Há muito que o nariz do morto deixou de me atrair com as lições que pela descrição de suas glórias, uma geração ensina à outra; como quando Antônio Carlos Vilaça era obituarista ou, antes ainda, quando as orações fúnebres eram canônicas.

Raramente, quando a morte se anuncia, quando a criatura encara os novíssimos — que é como a Igreja nos ensinou a designar as catástrofes — sou tomado por um tão grande pânico que me incapacita a manter meu voto de silêncio às avessas — isto é, nada ler que me destrua o pavio de esperança, o fio fragilíssimo de bom-humor que me mantém de pé, ante o estado-de-coisas atual.

Os olhos da alma que se debruçam sobre o horror como que se emudecem — molhados e tristonhos, quando cedem à tentação de espiar o cortejo dos crimes como espetáculo, divulgados na web. Decrescemos em humanidade quando soçobramos, cedendo à tentação midiática, e damos uma espiadela nos porões do espetáculo de horror em que se tornou nossa política internacional, de guerra a guerra, passando do hediondo à catástrofe em dois quadros rápidos do noticiário na TV.

Parece que até mesmo sábios matemáticos aderiram à onda de divulgação do horror (no cinema), ao criar algoritmos que planejam cada cena mais dolorosa e ao gosto do freguês, para saciar a fome de violência que retroalimenta a ansiedade dos olhos tristes deste início de século. O século 21 é o da Jihad permanente, o da morte explosiva a cada 24 quadros dos filmes ‘blockbusters’, que conquistam as mentes e o olhar ansioso dos expectadores hiper extasiados que lotam salas refrigeradas em fins de semana tediosos.

Confesso não saber o que seria pior a ficção ou a realidade. Meu desconhecimento é minha desilusão. A medida adotada foi a de fechar os olhos ao universo de terror hoje que corre mundo em segundos. Prefiro a beleza furtiva dos quadros antigos. A beleza de outras letras, de outros sons. Aí, como se estivesse à beira do lago espero o espetáculo dos cavalinhos multicoloridos, a descrição sem fim de uma Nárnia particular (ou de uma rua das Quaresmeiras Roxas) onde me perco debruçado, avesso ao riso dos circunstantes sobre a fraqueza de minhas retinas tão fatigada. Como no poema de Drummond de Andrade — diante da “pedra no meio do caminho” — eu as evito por incômodas, indecifráveis, estorvos, que se antepõem feito pedras no meio do caminho da busca da felicidade.

Como na infância frequentemente acontece, de os meninos se calarem ou fecharem os olhos diante de uma cena desagradável ou mesmo de uma briga feia na rua, também assim fecho os olhos ao horror. Seria uma crença insustentável a de que não ver a calamidade, minimizaria a dor. Ledo engano desta avestruz cibernética, que como no poema de Castro Alves parece repetir que não e não. O certo é que não pode o olhar humano resistir a tanto horror.

Eis que, quando abro a última página da revista semanal, em busca da leveza do cronista — como no futebol o fazia lendo os tabloides do sul do país — sempre à página derradeira. Descubro, no entanto, que é sobre a tristeza que o cronista se debruça: “Tristeza sem Fim”.

Um outro diria: é o bastante! Mas eu persisto. Acho meu vínculo com aquele cronista e com você, petulante leitor, quando nos vemos diante desta página em branco que vai se tornar esta crônica que agora lemos (ou relemos).

Se sentes na posição de quem navega no encapelado mar, em busca de alegria, eu te digo: difícil será achá-la no noticiário da política brasileira ou internacional. O texto lido, assinado por J.R. Guzzo, se abre com a citação do poeta Castro Alves em “O Navio Negreiro”, nos antológicos versos de denúncia do antigo tráfego humano: o poeta pinta “um quadro de amarguras; [com] tétricas figuras em cena infame e vil…”

A vileza do tráfego atual, ao ritmo de até 200 mil pessoas por ano, instaura um novo tempo de barbárie e cria novos navios negreiros, em que os condenados tentam fugir à ameaça do terror tribal e das milícias mulçumanas. Vivem esses degredados, no mar, a aventura perigosíssima de seres indefesos. O cristão que habite o continente africano, de onde surgiu um dos gênios da caridade cristã — reconhecido como Santo Agostinho —, confessar-se-á em estado de pré-Inferno, como protagonista de cenas infames e vis, indignas de qualquer tratado da mínima misericórdia.

Fugindo do inferno que representa o continente africano, cruzar o Mediterrâneo poderia ser a chance de pelo menos, adentrar ao purgatório. Mas há o tráfego e as barreiras de entrada…há pedras em meio ao caminho marítimo; novos grilhões neste ultramoderno navio negreiro.

Forçoso é reconhecer, ao final da leitura de J.R. Guzzo, que de fato a atitude de nossa diplomacia terceiro-mundista, que quer nos forçar a reconhecer “as razões dos carrascos”, na desrazão dos cães de guerra; diplomacia que nega a civilização ocidental para defender ou se calar diante dos nefastos atos daqueles que se auto-intitulam “militantes muçulmanos” — quando são, no fundo, terroristas matriculados e muitas vezes recrutados entre os filhos do Welfare State europeu. Esse tipo de atitude da diplomacia só pode ser um equívoco diplomático ou pura safadeza.

Há um príncipe, no fundo da “tristeza sem fim” do cronista. Um príncipe da elite jordaniana, que em tese deveria defender esses náufragos da fuga do inferno africano. Ele se intitula Sua Alteza Real, o senhor Zeid Ra’ad Al-Hussein, um egresso da universidade europeia de Cambridge, onde estuda a elite endinheirada do mundo. Segundo o cronista Guzzo, é aí que o craque vira perna-de-pau, pois o príncipe põe a culpa na Europa que o acolheu, por não receber os seus “primos”, agora conduzidos em alto-mar como porcos ou ração.

O príncipe Al-Hussein usa a tática padrão dos manipuladores da verdade: para se defender, acusa; na inação, ataca pondo a culpa na civilizada Europa. É do tipo que não toma uma iniciativa sequer de misericórdia humanitária e de ação prática e, do alto de seu posto na ONU, nada faz contra as milícias que degolam, enjaulam e promovem a matança num genocídio interminável.

Por isso, Zeid Ra’ad Al-Hussein é um “craque do politicamente correto” mas um perna-de-pau no jogo real da decência (como tantos que vemos na política brasileira!). Al-Hussein mereceu assim do cronista famoso o epíteto de príncipe do comportamento “moralmente safado”.

A causa da tristeza sem fim do cronista é a mesma que me faz pôr o ponto final a esta crônica, mas o faço com diferente conclusão. Prefiro a frase do presidente dos EUA, Ronald Reagan, em 1985, tirada a memorável discurso diante dos portões do antigo campo de concentração nazista de Bergen-Belsen na Alemanha: “a morte não pode triunfar para sempre”.