Não dá pra construir um Brasil melhor com ovos de chocolate que não contenham glúten

Não dá pra construir um Brasil melhor com ovos de chocolate que não contenham glúten

Minha falta de fé anda irritante, eu reconheço. Tive um desentendimento com a minha mãe — e sei que isso é motivo mais que suficiente para que as minhas mãos sequem — por conta de um benzedor de cobras. Cria ou não cria naquilo? Não cri, pra variar. Enquanto eu ria, a gentil senhora fechou o cenho para me convencer que o sujeito convencia sim as serpentes a se escafederem do perímetro de uma gleba inteira, valendo-se apenas do instituto dos espasmos medonhos, trejeitos inimitáveis e muita, muita oração.

Tanta impertinência não convinha nem a mim mesmo, era algo contra o que eu lutava a todo instante. Ainda assim, provoquei-a. Solicitei o endereço do milagreiro benzedor, pois precisava repelir certas cobras cotidianas, batizadas pela literatura drummondiana como as pedras do caminho. Ela disse que dar não dava. Ou melhor, até daria os dados completos do sensitivo, não tivesse o dito-cujo morrido logo após realizar uma derradeira incursão exorcista em covas, buracos e coivaras de uma fazenda, acometido por uma picada de abelha. Deviria ter expulsado as colmeias junto com os ofídios.

Por que os feriados dão-me alergia? Ora, a quaresma estava minguando. Vinha pela frente a famosa Sexta-Feira da Paixão, que muitos néscios confundiam com o Dia dos Namorados. Estultice. Era apenas quarta-feira, cheguei ao fórum com um calhamaço de problemas de um cidadão comum sob o sovaco — eu também sei reclamar —, mas deparei com uma placa dependurada na porta do gabinete de um magistrado: “Fui pescar”.

É claro que senti raiva. Eu não gozava das benesses do poder judiciário. E nem as queria, falo sério. Além disso, eu já não pescava há tempos, condoído em fisgar com anzol a boca de um peixe. Que semana! Na manhã de segunda-feira, um amigo metera um pipoco nos miolos, interditando a pista de caminhada, e isso ainda estragava os meus dias. Desci a rua, aturdido, a pensar com pesar naquele sujeito, de como gastamos mal o tempo juntos, até que cruzei a praça onde, há poucos dias, uma multidão de indignados desfilou patriotismo e intolerância em busca de uma nação ideal, sem roubalheira, sem violência, sem injustiça, sem brasileiros, quem sabe até.

Na Sexta-Feira Santa comi bistecas de porco, e não foi por provocação. Foi pura distração, eu garanto. De tão vazia, a cidade parecia viável, pois descansava dos ônibus, automóveis e das pessoas. Onde estariam agora os caras-pintadas e seus paus-de-selfie importados de Taiwan? Será que saíram para pescar com os juízes e deputados? Ou teriam embarcado pra tomar vinho em Santiago? Talvez, trepassem de lingeries verdes-amarelas em cabanas de um hotel-fazenda. Mais do que embarcar na onda, eu detestava pensar e agir como um boi.

Permaneci em casa, mais pregado que o messias. Cada um carrega a sua culpa, é o que dizem. Lubrifiquei minhas ventoinhas com cerveja. Vi pela TV as filas intermináveis de carros que evadiram das principais metrópoles do país. Mesmo presos nos congestionamentos, mesmo com os radiadores fervendo mais que o meu cérebro, mesmo com o combustível custando os olhos da cara, a satisfação estampada nos rostos das pessoas contagiava-me tanto quanto a Febre Chikungunya, se é que me entendem.

Se eu pudesse, cuspiria marimbondos, mas só havia mosquitos da dengue. Por onde andavam os meus iguais, passageiros da agonia que clamavam contra o governo, contra a crise econômica, contra a alta nos preços dos combustíveis, das tarifas de ônibus, água, luz, telefone, das próteses de silicone (o câmbio tava um horror), do imposto de renda pessoa física, dos honorários das prostitutas tísicas vestidas com calcinhas de renda? Cadê a bravura estampada em fotos nas redes sociais? Eu podia até ser um chato ao cubo, é verdade, mas ainda me restavam migalhas de bom humor: as frases que mais se ouviriam no final de semana prolongado seriam “Completa o tanque, moço”, “Enfia tudo, benzinho” e “Na segunda-feira, a gente pensa nisso”.

Parei de regar com cevada e lúpulo a minha matilha de neurônios. Não dava pra construir brasis melhores daquele jeito, enchendo a cara, reclamando de todo mundo, sentindo-me pior do que a média dos últimos anos. Como diria um tecnocrata de ministério em Brasília: o ponto podia até ser facultativo, mas a vida era obrigatória. Ora, eu tinha a cidade inteira ao meu dispor. Então, tomei conta dela, da minha causa vã. Vou lhes contar uma coisa: o vazio que restou por ali foi uma belezura.

Ilustração: Ron Mueck