Vou atirar um avião contra os Montes Urais para provar que te amo

Vou atirar um avião contra os Montes Urais para provar que te amo

“A cidade é uma moça”. Partindo dessa premissa, aportou no Rio, onde nadou, nadou, nadou, nadou em busca de um amor, mas morreu na praia. Foi reanimado com falta de jeitinho pelos simpáticos cariocas praianos, com mate gelado na fuça e um sol a pino a esturricar o seu coração partido.

Partiu, então, para São Paulo, terra das oportunidades e das atrocidades. O nome pomposo de santo apostólico romano não impediu que a louca metrópole o engolisse. E mais: ao contrário do que o poeta baiano cantou em Sampa, nada de diferente aconteceu no seu coração ao cruzar a Ipiranga e a Avenida São João. Pior pra ele: foi vomitado pela garganta capital ali na altura da Rua Augusta, aos pés de dez mulheres-com-pênis que o fitaram sem nenhum tesão ou piedade. Não se tratava de recalque ou de baixíssima autoestima: foi recolhido, levado pela viatura até um laboratório da USP; à medida que foram debulhando o seu genoma, os estudiosos entediaram-se tanto com a cadeia cromossômica que um deles, descontrolado, ameaçou introduzir o dedo indicador no próprio ânus e rasgá-lo em sinal de protesto.

Desenganado pela ciência e pelos travecos, fez um fluxo contrário — sentia-se mesmo um vômito — e embarcou num pau-de-arara gentilmente cedido pelo acervo histórico da Secretaria Estadual de Segurança Pública rumo a Recife. O plano era afeiçoar-se por uma recifense nonsense, quem sabe, uma daquelas malabaristas circenses que faziam shows performáticos nos semáforos. Ele precisava de uma mulher desequilibrada que lhe desse um prumo na vida, em cujos braços pudesse se aninhar, feito um daqueles três bastões que rodopiavam no ar sem tocarem o asfalto.

Entabulou um monólogo promissor com uma gata argentina tatuada com as caras do Che e do Maradona nas ancas. Até então, ele sequer supunha que nascessem argentinas em Pernambuco. Como nenhum motorista atirasse mais moedas, a conversa com a gringa degringolou. Foi ameaçado com querosene por uma portenha agressiva, que cuspia fogo do outro lado da rua. Escafedeu-se. Mal dobrou a esquina, viu quando as duas beijaram-se com uma paixão tão grande que ele se encheu de autocomiseração, inveja e raiva divina. Dobrou os joelhos sobre a calçada, chorou com uma fé pífia, desacreditando de quase tudo que fosse misterioso, invisível, microscópico.

Vejam só: de volta ao interior do Brasil, o sujeito percorreu todos os bares de Belo Horizonte em busca de torresmo, novos horizontes para a sua vida afetiva, e alguma paz de espírito. BH, vocês sabem, não tem mar, mas tem bar à beça. Portanto, era fácil afogar as mágoas naquele paraíso gastronômico em que as mulheres desimpedidas faziam qualquer coisa por um pão de queijo, até ficarem com ele. Nada rolou, senão batatas gratinadas com baba gástrica sobre a calçada.

Enquanto curtia disenteria na latrina da rodoviária, por causa do excesso de gordura saturada ingerida na cidade boêmia, leu num folder promocional da Reader’s Digest que Porto Alegre era a capital brasileira que mais possuía separatistas e loiras de olhos azuis. Partiu. Foi aí que se estrepou. Ele não queria se separar. Ele só queria se atrelar a alguém. Quando finalmente conseguiu encadear um solilóquio incrível contra uma carismática caucasiana, a ébria guria arriou a saia até a altura dos joelhos (eram belos joelhos, ele contou-me antes de ser morto por três tigres tristes), apontou com o dedo uma suástica recortada com gilete nos pelos pubianos, e confidenciou que estava tri-afim que ele sumisse das plagas gaúchas, antes que ela requisitasse uma surra dos seguranças.

Segurou nas mãos de Maria, mãe de Deus, e foi dar em Brasília. Gastou dois dias e meio de ônibus até a Capital dos Escândalos, após escapar com vida, mas sem dinheiro, de um assalto à mão armada na altura do quilômetro 157. Mesmo próximo ao poder e à roubalheira institucionalizada, a premissa era não pagar 20% de propina para ser amado por quem quer que fosse, ainda que terminasse a sua saga em busca do amor verdadeiro vagando a esmo pelo Plano Piloto. Sua decepção amorosa era tão monumental quanto aquele Eixo que cortava a cidade de cabo a rabo.

Rabo remetia à vaca, boi, bezerros, aos cavalinhos de Platiplanto, enfim. O próximo destino ficava a apenas duzentos quilômetros dali. Mochileiro solitário rasgou a pé até Goiânia — a versão sertanejo-universitária de Nashville — a única cidade do mundo em que as ruas eram pavimentadas com estrume de nelore e se pegava mulher a laço, mais do que se catava pequi no cerrado, pois os tratores do agronegócio já tinham liquidado todo o ecossistema da região. Passou um perrengue danado. Além de não conhecer nenhuma moda sertaneja com mais de três acordes, teve o violão furtado durante uma serenata para prostitutas em final de carreira.

As desilusões amorosas foram capitais e incontáveis. Em Macapá, quase teve um dos braços arrancado à foice durante um pega-pra-capá. Em Palmas, foi aplaudido de pé pelos ébrios de um antro formidável, ao declamar, de cor e salteado, o soneto “Psicologia de um vencido”, de Augusto dos Anjos. Na cidade de Vitória, perdeu as contas de quantas mulheres disseram não obrigado fica pra depois. Em Porto Velho, pintou aquele velho desejo de pular de uma ponte, dentro da boca de um jacaré. Em Fortaleza, sentia-se mais desamparado que um pescador remando numa canoa quebrada. Em Salvador, tomou um beijo salvador aos quarenta e oito minutos do segundo tempo, mas a moça era de mentirinha. Em João Pessoa, ao declamar Fernando Pessoa, foi tachado de bicha por uma parva paraibana. Era linda a danada.

Por fim, foi parar no Pará, mais precisamente em Belém, cidade onde Jesus nasceu. Morria naquela capital toda a esperança de encontrar o amor da sua vida. Ludibriado por três vagabundos que se passaram por três reis magos que possuíam três pratos de pato no tucupi para três tigres tristes, padeceu sob a ponte e a pilastra, foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos (mais conhecida como vala comum), ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, ficou o tempo inteiro em pé, à direita de quem já estava sentado à direita de Deus Pai Todo Poderoso, donde ditou para mim essa real e extravagante odisseia em busca do amor de uma mulher.

* Texto inspirado na canção “Mulher e cidade Marília”, de Moraes Moreira.