Eu não preciso de delação premiada para confessar o quanto odeio tudo isso

Eu não preciso de delação premiada para confessar o quanto odeio tudo isso

Vou escrever com um pouco mais de raiva, que é pra ver se você me entende: eu não preciso de delação premiada para confessar o quanto odeio tudo isso.

Regado a cerveja e ócio, eu fui criando raízes ali mesmo na sala. A praga era eu. Pela TV, vencido, eu assistia a um sujeito bonachão, com ar superior (parecia mais um tenista de clube social sem terra nas unhas), tinha gel nos cabelos, malícia nas palavras, e depunha na Câmara Geral dos Porcos, explicando às putas e aos deputados, por a + b, tim-tim por tim-tim, como é que recebia propina dos empresários da Construção Civil de Mentiras, na época em que delinquia no governo federal, perfurando poços artesianos com saca-rolhas em busca de decência escondida dentro do peito.

Mais à vontade que um pedófilo num jardim da infância, o sujeito contava à apalermada plateia que roubava desde criancinha, por iniciativa própria — começara por puro hobby — seguindo um talento que vinha de família, pois descendia de uma coorte de canalhas de sangue azul que fizera fortuna sangrando o erário de tudo que era jeito, em especial, nos bons tempos da ditadura militar (quem disse “nos bons tempos da ditadura militar” foi o depoente; não faço outra coisa senão reproduzir nessas linhas toda a patacoada que vi na TV).

Torturado nos sovacos com uma pena de canarinho-da-terra, amparado pela delação premiada, o sujeito falava pelos cotovelos, contava tudo o que sabia à Comissão Parlamentar de Escândalos, numa tal serenidade e extroversão que mais parecia lorota de jogador de sinuca, embora prolixo feito larva no lixo, exagerando nos floreios e, até mesmo, inventando um algo mais — quem poderia garantir que não? — apesar de ter jurado para a falecida mãe (a velhota matara-se de desgosto) que diria a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade.

Não dá pra mentir: em matéria de confessar os pecados, o sujeito era uma garrucha de simpatia. Parecia até o meu personal-liar. Com raciocínio gordo, maquinei: o inferno deve estar lotado de gente carismática. Quanto mais eu ouvia, mais eu ficava, mais eu tinha vontade de me embebedar e ir morar em Zurique, longe das CPIs, das corruptelas institucionais e das balas perdidas.

Conclamei Lola — a cadela — para me ajudar, mas ela a tudo sorria, babava e lambia, declarando-se entre uivos e latidos que não se importava nem um pouco com as falácias, com as malquerenças, com a torpeza humana, pois era apenas um animal com sapiências de ser feliz, que nutria por mim máxima devoção. Se o dono fosse aquele faroleiro desonesto, Lola lamberia as suas mãos com a mesma idolatria. Os canídeos simplesmente não possuem escrúpulos, jamais farejam imoralidade nas pessoas, ainda que escarremos neles: eles amam os homens como se fossem a tíbia de um boi.

Pode parecer veadagem da minha parte, mas senti uma vontade danada de me casar com aquele cara. Era um pilantra garrido, rico a granel, de pele boa, com um charmoso sotaque carioca, e que transmitia uma segurança do cacete. Pensei deve ter tido aulas de oratória com o cão-tinhoso. Valendo-se de um português perfeito, o pulha de black-tie garantiu que repatriaria cerca de duzentos milhões de patacas, a pedido da Polícia Federal, da Procuradoria Geral da União, do Papa Francisco e da Xuxa.

Quanto patriotismo. Quanta galhardia do degenerado com escolaridade superior completa. Sei lá. Tem gente que nasce, possui um talento danado pra iludir os outros. Era como se aquele miserável sedutor vomitasse sobre o povo golfadas de desumanidade com aroma de lavanda. Deu pra entender ou vou ter que escrever com um pouco mais de raiva para que fique claro?