Lugar de mulher é na cozinha

Lugar de mulher é na cozinha

Enquanto lavava as louças, ouviu pelo rádio que no próximo domingo seria comemorado o Dia Internacional da Mulher. Na altura do campeonato, achava aquilo irrelevante. A meta era se matar antes do final da quaresma. Acredite quem puder: a única carne vermelha que comiam naqueles dias era o seu coração vazio servido num prato fundo. Pensamentos rasos e malinos galopavam na sua cabeça: seria mesmo uma filha-de-uma-égua, como o marido sempre dizia?

“Ó, Senhor Jesus, ajudai-me a carregar essa cruz…” — a despeito do padre-poeta profetizar pelo rádio que a água do mundo e a paciência de Deus estavam perto de um fim, o líquido raro escorria pela torneira a lavar as sujeiras menores da casa. Por causa dos espasmos, as pálpebras tremeram convulsionadas, desastradas evidentemente, a salpicarem lágrimas sobre a pia. Mulher chora por qualquer coisa? Lá da sala, um homem qualquer berrou que não queria ouvir mais nem um pio. Então, ela calou.

O que andava pegando — e muito — é que, ultimamente, o sujeito já estava se metendo com as próprias filhas, num vai-e-vem abafado dentro das madrugadas, que deixava aqueles corredores pestilentos do barracão mais vivos que as próprias chagas de Cristo. A gota d’água foi esporrar no berço da caçula. A coisa toda passara dos limites. Sentia-se mais insolente que uma mariposa.

Ela não sabia se ficava ou se corria, se voava ou se escondia, se matava ou se morria. Sua fé era intensa, desagradável: levava ao pé-da-letra aquela ladainha toda de “Não matarás” e blá-blá-blá e bi-bi-bi. Arre! Molambo, morta em pé a carregar uma redundante bolota de músculo pulsátil dentro do tórax, aquela criatura tocava a vida da pior maneira que conseguia, cheia de culpa, de hematomas, de dilemas e de celeumas que fariam o próprio Moisés voltar atrás, desdizer o que foi dito, e espatifar contra a montanha os tais Dez Mandamentos.

Manda quem pode. Obedece quem tem juízo. Quando o pau canta, tem sempre alguém dizendo já demorou, que o caso já devia ter sido denunciado às autoridades locais e coisa e tal. Não é para isso que as leis existem? Para protegerem, por exemplo, o mulherio de levar bordoadas dos homens, de serem curradas, de comerem capim pelas raízes?

Ora, ela amava o sujeito do mesmo jeito que alguém ama uma cólica de rins. Porra nenhuma! Restava uma guimbinha de sensatez em meio a tanto caos existencial. Portanto, raciocinou bem assim: deitar-me à cama, ao lado de uma rocha, seria muito mais leve.

Não tinha a mesma diligência e coragem da filha mais velha que, aos 12 anos, fugiu de casa pra ir morar com estranhos na rua. Notem só como eram as coisas: se ela tivesse perguntado à criançada como dar fim àquele martírio coletivo, todas elas teriam escrito, a oito mãos, uma mesma carta ao Papai Noel, para que o bom velhinho fosse irrisoriamente malvado e lhes trouxesse uma bomba de vespas adultas novinha em folha para ser enfiada, implodida na garganta daquele velho fila-da-puta enquanto ele dormia depois de um estupro.

Dinheiro. O dinheiro faz um mal tremendo à humanidade, por mais felicidade que ele mande trazer. Ora, a questão da grana pesava tanto quanto a própria mão de Deus. Vítima de uma bárbara oligarquia familiar que mandava e desmandava no Maranhão, aquela miserável migrante tinha estudado um quase nada na vida. Se fosse pra meter um rótulo na sua testa — que é um tipo de procedimento atroz bastante apreciado pela sociedade — poder-se-ia desenhar assim, em letras garrafais: “Aqui peleja, com muita fé e espanto, uma mulher ignorante de pai e mãe, contudo, trabalhadeira que só”.

O ofício compulsório era cuidar da casa, pajear uma barrigada de filhos que não paravam de nascer, de sentir fome e raiva da vida. Já viu criança querendo morrer pra ficar em paz? Ora, não existe nada mais desmoralizante à espécie humana do que esse tipo de sentimento.

É duro. Tem certos dias que a gente pensa, diz, faz, escreve cada coisa. O epílogo pode parecer um ultrajante exagero, mas, o seu sonho era dormir e não amanhecer nunca mais. Assim se deu, conforme o planejado. Ela voou antes de encerrada a quaresma, repetindo a fraqueza da mãe, da mãe da sua mãe, e de um sem número de mulheres brutalizadas, acusadas de terem nascido para esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque. Tudo isso sem dar nem mais um pio, conforme certos homens de verdade apreciam.